Uma barreira entre nós

Quantas pessoas já cruzaram a nossa existência, fizeram parte do prosaico, conviveram no dia-a-dia, mantiveram a nossa atenção como um ponto unido e de repente, algo surgiu e os afastou para sempre

Por: Luiz Alca  -  25/10/20  -  17:50
  Foto: Imagem ilustrativa/Unsplash

Da janela do meu quarto, assim como do pequeno terraço e de outros cômodos do apartamento, eu enxergava um prédio cujas unidades de fundo davam para uma deliciosa rua lateral ao edifício em que moro, no Boqueirão. Um bairro que já foi aprazível, se é que podemos chamar assim, hoje tomado por construções gigantescas que mudaram sua feição um tanto doméstica em termos de convivência. Enfim, são coisas do progresso e que mudaram tantas faces, assim como afastaram familiaridades que hoje vivem apenas em nossas lembranças.


Mesmo não sendo bisbilhoteiro e tendo horror ao exercício de controlar a vida dos outros, passei a conviver com a presença diária dos moradores, cuja sala e sacada, eu presenciava obrigatoriamente. E não fosse um apaixonado cronista, que sonha com histórias para ter material, fazia considerações através de suas atitudes.


Ao senhor de olhar ao longe que se isolava no terraço do primeiro andar defronte da piscina para fumar o cigarrinho com o cachorro aos pés numa fidelidade tocante – também o reconhecia na rua passeando com o animal - atribui uma suave solidão, junto com uma faixa de marginalização familiar, aquela que hoje acompanha os fumantes remanescentes, vistos como párias sociais. O que acho muito injusto, mesmo nunca tendo colocado um cigarro nos lábios.


O casal do segundo andar, ela com ar autoritário, o que parecia, mesmo à distância e ele, sempre limpando a casa e colocando roupas para secar num varal com todo o empenho, me parecia uma réplica do casal do filme “Beleza Americana” e cada vez que o via se esfalfando na lavagem do terraço, associava a imagem.


No terceiro, tomado por uma cortina vermelho vivo que atraia toda a atenção, um cara de look afro, entre trancinhas e mil pulseiras e correntes, sempre parecendo liderar um bando feminino. Ali sempre associei haver um clima de alto erotismo.


De repente, aconteceu o que anda acontecendo em todos os bairros residenciais da cidade: a derrubada de duas encantadoras casas e o alarde de um stand de vendas entre bandeirinhas, música, corretores ávidos para mostrar maquetes e eis que surge mais um espigão no local.


Agora, além do barulho ensurdecedor das serras, dos gritos dos pedreiros, dos caminhões parados à porta, trazendo transtornos aos moradores vizinhos até para sair de suas garagens, a construção já elevada a um quarto ou quinto andar, acabou com a minha familiaridade tão peculiar com aqueles estranhos. 


Já não os vejo mais; há uma barreira entre nós e com certeza, jamais voltarei a vê-los, porque com a exceção do senhor que caminha com o cachorro, não os reconheceria. Olho e apenas enxergo o paredão frio com os tijolos à mostra.


Essa cena tão banal da vida que deu esta crônica do cotidiano, tem muito a ver com as peripécias do destino, não é? Quantas pessoas já cruzaram a nossa existência, fizeram parte do prosaico, conviveram no dia-a-dia, mantiveram a nossa atenção como um ponto unido e de repente, algo surgiu e os afastou para sempre, mesmo porque não privavam do convívio embora fossem próximos.


Seguiram seus caminhos, não os vi mais. Como aconteceu no meu bairro, uma barreira se ergueu entre nós.


*Texto publicado em 29/8/2015, na revista Luiz Alca Crônicas, página 48


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