Para isso fomos feitos

Como a estrela que se apaga na treva, há a luz que esclarece os caminhos e as dúvidas

Por: Luiz Alca  -  23/08/20  -  19:04
  Foto: Imagem ilustrativa/Unsplash

Vinicius de Moraes diz lindamente “Para isso fomos feitos; para lembrar e ser lembrados; para chorar e fazer chorar. Para enterrar os nossos mortos – por isso temos braços longos para os adeuses – mãos para colher o que foi dado e dedos para cavar a terra” 


Para isso fomos feitos: para a esperança no milagre, para a participação da poesia. Também fomos feitos para ver a face da morte e de repente nunca mais esperaremos. “Hoje, a noite é jovem; da morte, apenas, nascemos imensamente”. 


E tendo caído esse texto às minhas mãos, num momento doce ou perigoso de divagação acrescento: para isso fomos feitos: para não guardar rancores, apesar de assumi-los quando os tivermos e redirecionar nossas mágoas para a construção de novos relacionamentos em base mais sinceras e amplas.


Para isso fomos feitos: para entender que aqui vivemos uma etapa, a que é chamada existência que faz parte da vida, mas que não é toda a vida apenas porque é concreta, material, tangível, sendo essa passagem, uma linda possibilidade para trabalharmos a evolução e não, para se prender a uma medíocre permanência, elegendo o dinheiro, o status, o poder, como deuses absolutos. Que deuses menores estes, apesar de nos servirem momentaneamente. 


Para isso somos feitos: para tentar – ao menos tentar, por favor – o exercício da generosidade e da compaixão e não nos fecharmos nos apelos da mesquinhez que, sem dúvida, ocupam o nosso lado sombra, mas precisam ser superados por aquele delicioso prazer de ficar contente em ver a felicidade do outro e de conseguir, realmente, com-partilhar de suas euforias e paixões; assim como dos medos e dificuldades.


Vinicius também diz “Assim será a nossa vida: uma tarde sempre a esquecer, uma estrela a se apagar na treva, um caminho entre dois túmulos. Por isso precisamos velar, falar baixo, pisar leve, ver a noite dormir em silêncio”.


E então, sem pretensões, prossigo: como a estrela que se apaga na treva, há a luz que esclarece os caminhos e as dúvidas e quando conseguimos enxerga-la, temos o compromisso de passar a esperança para os que tiveram suas estrelas apagadas; sim, temos esse compromisso sagrado porque para isso fomos feitos...eis porque nos foi dada a emoção, a sutileza, a possibilidade da percepção. Para poder usar em favor de quem está perdido, sentindo-se abandonado.


Há também que se ajudar o outro a manter a inquietação, essa chama que envolve e conduz e não, a achatá-la para que desapareça ou se faça defeito e assim anular esse outro, ainda que essa atitude vil possa ser vantajosa para nós, no domínio e na pressão.


Vinícius finalmente diz “Não há muito que dizer: uma canção sobre um berço, um verso, talvez, de amor, uma prece por quem se vai. Mas que essa hora não esqueça e por ela nossos corações se deixem, graves e simples”.


Tão simples que possamos abri-los a todos os que querem conhecê-los e nos amar de forma derramada. 


Que bom que para isso fomos feitos! 


*Texto publicado em 29/8/2015, na revista Luiz Alca Crônicas, página 8


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