O que não foi vivido

Em todas as vidas existe qualquer coisa de não vivido, do mesmo modo que em toda palavra há qualquer coisa que fica por exprimir. O caráter é a obscura força que se assume como guardiã dessa vida intocada

Por: Luiz Alca  -  08/11/20  -  14:06
Atualizado em 19/04/21 - 17:50
  Foto: Imagem ilustrativa/Unsplash

Tenho pavor dessas frases feitas sem nenhum significado a não ser preencher espaços de conversas ou publicidade ou tentar comover pessoas com suas palavras melosas que fazem o sucesso de um jargão para os que se recusam a pensar e questionar.


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Implico solenemente com “se ficar melhor estraga”, “em time que está ganhando não se mexe”, “fazer o bem sem olhar a quem”, “cada um no seu quadrado”, “pra frente é que se anda” e centenas de outras, que muitos pronunciam com ênfase – assisto a cena, de vez em quando nas entrevistas de TV, em discursos e palestras – dando a importância que só cabe ao original e ao criativo.


Talvez a frase feita que encabece a lista seja “resgate a criança que existe dentro de você”. Até tremo ao ouvir isso. Eis porque achei interessante na leitura do filósofo italiano Giorgio Agamben, uma das inteligências mais iluminadas da atualidade, em “Idéia da Prosa”, que até já recomendei em dicas sobre livros, algo que tem tudo a ver com o que está dito acima, com a diferença fundamental do conteúdo adequado.


“Em todas as vidas existe qualquer coisa de não vivido, do mesmo modo que em toda palavra há qualquer coisa que fica por exprimir. O caráter é a obscura força que se assume como guardiã dessa vida intocada; vela atentamente por aquilo que nunca foi e inscreve no teu rosto a marca disso. Por essa razão a criança recém-nascida parece já ter a semelhança com o adulto. Há num como no noutro, aquilo que não foi vivido”.


Falem a verdade: não é lindo e contém toda a grandeza do viver e do compromisso de resgatar?


Se no bebê existe todo o sonho do que não foi vivido, já que ele é um mínimo de realidade num máximo de possibilidade; nele tudo é potência e quase nada realização, o que faz o encanto de uma mãe e de um pai ao pegar seu filho nos braços pela primeira vez (creio eu não sendo pai), em nós também isso reside. 


Lá bem no fundo, os impulsos do ainda não feito, dos sonhos que ficaram como sonhos, arquivados, mas não esquecidos, o outro lado da opção, que inclui a questão “como teria sido se tivesse sido diferente?”. Inscrito no nosso rosto para ser visto apenas por aquele espelho pessoal, quando não oxidado.


O que impede de se perceber isso é o relativismo imposto pela sociedade líquido-moderna, uma das pragas deste tempo que invade corações e mentes, uma terrível manipulação de forças interessadas em reafirmar a mediocridade. Trata-se de reduzir as pessoas ao que está à frente num momento e pede resolução, fazendo com que a gente se veja apenas como extensão daquilo. Assim é que a vida passa e prende as pessoas numa servidão voluntária tornando-as impotentes diante do corte prosaico na totalidade que o identificaria.


Perde-se então a consciência da vida nua, a liturgia entre o sonho e o silêncio, a norma e a exceção, a lei e a transgressão, o sentido que Sartre quis dar como afirmou “o homem é o ser condenado à liberdade”


Sentir, ao menos sentir, o que não foi vivido e pensar em fazê-lo um dia é o verdadeiro resgate, sem qualquer boba frase feita.


*Texto publicado em 29/8/2015, na revista Luiz Alca Crônicas, página 62


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