O espaço de si mesmo

É duro criar esse espaço de si mesmo, muito duro. Até porque poucos facilitam e há que se contar com a tendência natural à acomodação e a vontade de pedir aos outros que nos aceitem em seus lugares, o que parece muito mais fácil e acolhedor

Por: Luiz Alca  -  01/11/20  -  11:00
  Foto: Imagem ilustrativa/Unsplash

Um homem mais novo do que eu, afirma convicto não ver mais um lugar para si mesmo no mundo, em nome de tantas mudanças, da alteração de valores, das transformações que não conseguiu acompanhar. Diz no e-mail que se sente deslocado, perdido. Afirma que a sociedade não lhe dá mais espaço e assim, se sente um estranho até mesmo no cotidiano e dentro da família.


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Aquele momento um tanto amargo de quem perdeu algumas referências, principalmente com a aposentadoria, pelo que deu para entender e pelo fato de estar desocupado e relegado a passear com o cachorro, tomar conta do neto quando a filha precisa e fazer o supermercado para todos os familiares. Afirma que ninguém à volta percebe isso porque disfarça da forma que pode e consegue.


Nessa nítida crise existencial ele precisa de uma clareza que virá, na certa, caso se permitir e afastar os resquícios de vitimidade sentidas nas entrelinhas do texto por mais que fale em sentido figurado dessa falta de lugar e tente ser natural.


Essa clareza inclui uma descoberta fundamental de todos nós, nas mutações criadas pelas circunstâncias: pessoas lúcidas e que não passam a vida se enganando são hábeis criadoras de um lugar para si mesmas no mundo. Shakespeare, o grande bardo inglês, o dramaturgo dos dramaturgos, afirmava através de um de seus personagens, Coriolano “eu sou o meu próprio Criador”.


Eis a nossa maior invenção no processo complicado e lindo de viver: a nós, somente a nós, cabe criar esse espaço. Que não só protegerá como abrirá caminhos e vai estabelecer o necessário respeito, suporte da segurança e da autoestima. Na certeza de que não somos meros prestadores de serviço.


Como conseguir em meio a tantas dificuldades e artimanhas de domínio? Em classificações mundanas ou ofertas discutíveis de um falso apoio que nada mais são do que disfarçadas dependências ardilosamente preparadas?


Percebendo que ninguém nos apoia mais do que nós mesmos, que toda ajuda é maravilhosa e bem-vinda, mas não nos alcança se não estivermos abertos para vê-la como auxílio e não como muleta ou aleijamento conveniente.


Quebrando preconceitos e tabus que tanto nos amedrontam e aprendendo a enfrentar as almas menores que fazem da marginalização a sua bandeira, de forma que se estabeleça um respeito acima de qualquer outra condição. Para isso é preciso muita coragem para os amedrontamentos covardes que sempre surgem pelo caminho e a convicção dos nossos propósitos.


Quem não tem como finalidade a evolução e passa a existência cumprindo metas, inclusive a de aposentar-se, não se preocupa em estabelecer o seu próprio lugar no mundo independentemente das chuvas e trovoadas que ocorram nos barrancos e desvios.


É duro criar esse espaço de si mesmo, muito duro. Até porque poucos facilitam e há que se contar com a tendência natural à acomodação e a vontade de pedir aos outros que nos aceitem em seus lugares, o que parece muito mais fácil e acolhedor.


Mas só assim respiramos o ar da liberdade, vivenciamos a notável experiência da individuação e usufruímos o prazer de uma vida que descobriu a sua própria Criação.


*Texto publicado em 29/8/2015, na revista Luiz Alca Crônicas, página 56


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