Esses dois eus

De que adianta construir, realizar, sem dar a tudo isso, o significado do nosso desejo para que o prazer se renove, para que haja, realmente, gratificação?

Por: Luiz Alca  -  22/11/20  -  15:25
Atualizado em 19/04/21 - 17:47
  Foto: Imagem ilustrativa/Unsplash

Um dos meus medos de infância, que me acompanhou até os 34 anos, quando descobri o motivo numa sessão de terapia era o de me enganar com relação ao que pretendia para mim mesmo na vida em termos de construir um futuro, de não me enganar quanto à vocação, de formar algo de concreto na existência, de lutar para atingir uma estabilidade. Na hora da descoberta, a cena surgiu clara saindo de seu esconderijo em minha mente: a conversa que ouvi entre minha avó e um parente, invejado por toda a família por ser o mais rico, o mais importante, aquele que havia sido o exemplo de um homem vencedor, quando ele declarou em sussurros “quer saber, embora todos pensem o contrário, não sou feliz, apesar de vitorioso diante dos olhos mundanos; na verdade, não era nada disso o que eu queria para mim. E só hoje percebo grande engano, quando não dá mais tempo para mudar nada ou arriscar”.


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O garoto que eu era estava por perto e ouviu a confissão. Fiquei impressionadíssimo ao ouvir a declaração frustrada de um dos meus ídolos, talvez o maior.


Eis porque hoje entendo o que Adler colocava brilhantemente como o saudável encontro que sempre deve existir entre o Eu-Desejante e o Eu-Atuante, para que não se lute a existência inteira, matando um leão por dia, num desgaste tirânico e inútil, pelo que não se quer. Como a personagem Scarlett O´Hara, no inesquecível filme “E o Vento Levou”, que luta pelo amor de um homem que na verdade ela nem queria, sequer lhe tinha afeto, por um mero capricho que a arrasta por anos e anos.


O Eu-Desejante é o responsável por nos esclarecer os desejos, as ânsias, por nos mostrar o almejado através dos sonhos e das fantasias. É ele que nos pergunta: quanto valemos para nós mesmos? Quanto valemos por nós mesmos? O que realmente pensamos sobre nós? Como nos reinventarmos. É ele que faz o nosso mundo significável. A seu lado, o Eu-Atuante que está atento ao concreto através da racionalidade e das captações dos sentidos, que se fica alerta para propostas e oportunidades, expectativas e perspectivas para formar o mundo realizável, tão importante numa vida concreta, material, tangível.


No entanto, de que adianta construir, realizar, sem dar a tudo isso, o significado do nosso desejo para que o prazer se renove, para que haja, realmente, gratificação e não apenas segurança econômica ou projeção de status. O que deve ter faltado para aquele meu parente. Não deixem de equilibrar esses dois fundamentais personagens em nosso Ser. Para não se chegar quase ao final, a tristes e amargas constatações.


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