Decisão solitária

Creio que o simples ato de escolher acima das dedicações habituais que a sociedade espera e o politicamente correto conduz, pode ser um alívio numa cena dita terminal

Por: Luiz Alca  -  18/10/20  -  14:20
Atualizado em 19/04/21 - 17:45
  Foto: Imagem ilustrativa/Unsplash

O papo é muito sério, tanto quanto a doença e a possibilidade da morte e da tentativa de prolongar uma existência. Mas espero que a resposta a quem a solicitou não pese, assim como a leitura aos que me dão a honra de um voto de confiança a cada crônica escrita.


A esposa de um homem ainda jovem, de 52 anos, portador de avassaladora doença, pai de três adolescentes, pergunta se o marido tem o direito de optar por continuar trabalhando no que ele diz que adora, mesmo sabendo que, segundo os médicos, pode reduzir o seu tempo de vida. Ou, se em nome, da família, tem o dever de ficar recluso em casa, em repouso, para seguir vivendo por um tempo indeterminado, mas segundo os médicos, a mais.


Difícil, muito difícil! Viver com prazo fixo, com a morte marcada é um fadário onde não se pode fazer ilações, filosofar em cima e principalmente, opinar em forma de direitos e deveres. Quem passa por isso, tem que fazer a sua escolha e ela deve ser respeitada de forma sagrada, creio. Ainda mais, se ele não se recusa ao tratamento necessário. Só pretende seguir fazendo aquilo que gosta até o fim. Que, por mais diagnósticos eficientes e comprovados, ninguém pode definir quando será.


Em seu livro A Lição Final, um professor americano Randy Pausch, que em nome de um câncer no pâncreas tem um veredicto de seis meses de vida, diz “há certos momentos em que não podemos trocar as cartas do baralho que recebemos, mas apenas pensar em como jogar”. Temendo cair no conselho, totalmente inadequado, apenas questiono: será que até numa hora derradeira, há que se pensar mais nos outros do que em si, por mais amados que sejam e em não havendo qualquer garantia de resultado?


Tive um primo muito querido que fez essa opção: a de continuar trabalhando em seu cartório até o fim. E não se tratava, de jeito nenhum, de ambição ou materialismo, muito pelo contrário; seu desejo era de manter-se íntegro e para ele, integridade significava lutar ao máximo, para morrer de pé. Foi uma escolha. O que era para durar oito meses, no máximo, se prolongou por três anos. E nunca o vi tão feliz.


Como se a proximidade da morte transformasse a perda em ganho, a reavaliar sua história e a colocar pontos ausentes no testemunho de sua história. Talvez, as pessoas que optam por manter suas atividades, em havendo disposição física, é claro, não queiram conviver, também, com aquela piedade escondida no gesto familiar ou a tolerância que antes não existia em nome do fim. Sabe-se lá.


Creio que o simples ato de escolher acima das dedicações habituais que a sociedade espera e o politicamente correto conduz, pode ser um alívio numa cena dita terminal. Mais do que coragem, a atitude desse homem que pretende continuar na ativa até onde der, é um ato de fé.


Na própria vida e nas lembranças multiplicadas. De envolvimento com a lenda pessoal em vez de perder tempo com vitimidades e lamúrias. Sem pensar que a Sombra surgirá macabra.


De qualquer jeito, esta não é uma resposta fechada. Quem sou eu para fazê-lo diante de uma decisão solitária de tal grandeza e força?


Aliás são essas decisões solitárias que nos colocam de frente com a nossa individuação e a coragem de vivê-las integralmente.


*Texto publicado em 29/8/2015, na revista Luiz Alca Crônicas, página 38


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