De volta ao lar

O que faz da morada um lar não é o espaço em si e nem a decoração, por mais que um profissional inove ou capriche, mas o aconchego, o calor humano de um lugar só nosso, mesmo que dividido com outras pessoas

Por: Luiz Alca  -  04/10/20  -  17:16
Atualizado em 19/04/21 - 17:46
  Foto: Imagem ilustrativa/Unsplash

Há quem não goste de voltar para casa, por mais absurdo que isso possa parecer, ou faz dela apenas um pouso para banho, troca de roupa e, quem sabe, alimentação. Não faz de um espaço, uma morada e nem percebe que ali é um refúgio de conforto interior.


Conhece aquelas pessoas que só estão bem na rua, que buscam todas as desculpas para sair, nem que seja para a praça de alimentação de um shopping, apenas para fugir das quatro paredes? Muitas vezes para não ficar só, para não ter que questionar certos fantasmas ou por achar que é lá fora que encontramos todos os prazeres, ainda que o divertimento seja discutível, mesmo que a turma que considera amigos, não passe de um bando de conhecidos em que não pode confiar e que só estão disponíveis para programas e jamais para um encontro verdadeiro, para a troca real?


O que faz da morada um lar não é o espaço em si e nem a decoração, por mais que um profissional inove ou capriche, mas o aconchego, o calor humano de um lugar só nosso, mesmo que dividido com outras pessoas. E principalmente, a identidade, que não pode ser perdida, quer em nome da modernidade, quer de um bom gosto que pode tornar tudo frio, sem vivência, sentido. Aliás, o que faz de um decorador, um artífice e não um especialista em tendências, palavrinha muito usada e que pode não representar nada.


Um dos primeiros a conceituar o que seria a essência de uma moradia foi um arquiteto romano, Marcos Vitúvio, em seu tratado “Da Architectura” usando lar como uma corruptela de lareira, em nome do aquecimento que o fogo sempre deu às cabanas e almas.


E assim, não apenas abrigar do mau tempo ou ancorar nossas coisas, mas ser o nosso esconderijo emocional e principalmente, se tornar cenário da intimidade, uma das descobertas mais preciosas nos encontros com o amadurecimento, a compreensão do espelho de nós mesmos que temos através do envolvimento com o que nos pertence. Quem não cultiva a vida privada e escancara seu mundo pessoal, perde a segurança e a autoestima.


Eis a importância de se ter imenso prazer em ficar em casa e que muitos consideram acomodação ou fuga. Sem exageros, sem deixar de cumprir as obrigações necessárias e sem se tornar um eremita, perdendo o reflexo e a delícia do convívio e da troca social que tanto enriquecem, voltar ao lar há que ser, um recurso do invulnerável, uma extensão de propriedade


Não da propriedade material que ela pode significar, por favor, mas daquilo que nos pertence internamente. A nossa casa deve ser uma continuidade do nosso Eu na porção tangível e concreta. Que nada tem a ver com apegos frívolos mas com representações de estima por aquilo que nos pertence por valores do afeto.


É lamentável ver que tantos fogem de sua casa como o diabo da cruz, aceitando qualquer programinha pífio só para escapar de si mesmo, quando é dentro desse lar que reafirmamos convicções e nos identificamos com a nossa proposta de vida.


Que bom é voltar para ele depois de uma jornada de trabalho ou de um compromisso social, sabendo-o o guardião fiel dos segredos e mistérios do cotidiano.


*Texto publicado em 29/8/2015, na revista Luiz Alca Crônicas, página 30


Tudo sobre:
Logo A Tribuna
Newsletter