'Você é que dá o sentido da sua vida'

O jornalista, cronista, escritor e colunista de A Tribuna Ignácio de Loyola Brandão, de 83 anos, esteve em Santos na semana passada, no ciclo de debates Envelheça Leve

Por: Egle Cisterna & Da Redação &  -  10/11/19  -  16:53
"A vontade de viver e a vontade de continuar a desenvolver. Isso faz a gente ir para frente"   Foto: Silvio Luiz/AT

Um ficcionista contador de histórias. É assim que o jornalista, cronista, escritor e colunista de A Tribuna Ignácio de Loyola Brandão, de 83 anos, define-se na vida. Com 45 livros no currículo e vencedor de sete prêmios Jabuti, neste ano ele se tornou imortal da Academia Brasileira de Letras e, no próximo mês, deve receber o título de intelectual do ano pela União Brasileira de Escritores (UBE). O mais recente romance, Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela, mostra um país num cenário futurista, em meio à corrupção, que elege seu primeiro presidente sem cérebro. “Qualquer semelhança é mera coincidência”, despista o autor, que esteve em Santos na semana passada, no ciclo de debates Envelheça Leve, de A Tribuna. Leia trechos da entrevista exclusiva:


São 60 anos dedicados à produção de textos. Há um segredo para a longevidade?


Todo mundo pensa que eu venho apresentar soluções maravilhosas, mas não venho. Esse assunto passou a me interessar depois que eu fiquei velho e fiquei pensando no meu futuro e as pessoas me perguntavam se eu guardei alguma coisa para a velhice. Não, mas a velhice já chegou e eu nunca deixei de trabalhar. A única coisa que eu acho que é importante para a pessoa é ter atividade. Não tem outra solução. Conheço dezenas de pessoas que continuaram. O (arquiteto Oscar) Niemeyer tinha 102 e fazia projetos. Talvez sejam pessoas excepcionais. Mas é também não desistir de continuar a criar, fazer alguma coisa.


Temos uma ideia de que a gente quer uma velhice tranquila, sem problemas. Mas o senhor pontua justamente o contrário: ter um problema ajuda a se manter ativo. Como isso funciona?


A vontade de viver e a vontade de continuar a desenvolver, a necessidade de ter problemas e ter preocupações. Isso faz a gente ir para frente. Ela me mantém vivo e obriga o neurônio a não virar uma loucura, uma caduquice, como se dizia em Araraquara (cidade natal do escritor). Mas é exatamente isso. É ter, acima de tudo, um projeto. Todas as pessoas longevas – não gosto muito desta expressão – tinham um projeto e por isso foram, foram, foram... 


Seu pai foi um dos exemplos de pessoas que tinham projetos e, depois de aposentado, abriu uma empresa, empregou companheiros e, por conta disso, viveu muito.


Então, eu tenho esse DNA, mas escrever é o que eu sempre gostei de fazer. Esse meu pai, um dia, quando me levou para a estação, aos 21 anos, para ir para São Paulo, na hora que eu subi no trem, ele me perguntou se eu queria trabalho ou emprego e eu respondi: ‘Pai, é tudo igual’. E ele me explicou: ‘Não, emprego é para comprar comida, pagar aluguel, pagar escola. Trabalho é teu sonho. Então faça teu sonho’. E eu nunca deixei. São 62 anos trabalhando e ando feito um louco por esse País. Eu não quero ficar parado, vendo televisão, enchendo o saco da minha mulher, lendo jornal e depois não tem o que ler. A vida não é essa. Você é que dá o sentido da sua vida. Desistir de tudo? Para quê ficar parado? Eu li uma vez uma frase da Marguerite Duras, grande escritora francesa, que diz que é preciso ser muito forte para não fazer nada. E eu não sou forte. Eu sou fraco. Tenho que fazer alguma coisa.


Sair, interagir e conversar com as pessoas é onde o senhor busca inspiração para escrever. Mas seu trabalho também requer silêncio, concentração e introspecção...


Um outro momento. Para mim, eu preciso do meu silêncio quando eu estou fazendo um projeto, entre 5h e 11h da manhã. Quando eu não estou fazendo projetos, eu faço outras coisas. Porque eu também faço livros institucionais. Fiz muita história de empresa, de banco, institucionais, empresários. Porque eles pagam muito bem e me sustentam durante uma época. E só quando me interessa, quando tem história para contar. Eu sou um contador de histórias.


Esse ano, o senhor entrou para a Academia Brasileira de Letras (ABL). Como encara esse novo desafio?


É uma coisa que eu disse no discurso de posse da ABL. Eu nunca pensei em entrar e nem a minha geração. Até o dia em que recebi o prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra. E ali, no momento que Eduardo Portela, um grande acadêmico e um grande linguista que já morreu, me entregou, falou: “No dia que você se candidatar, você tem meu voto”. E não sei por que, ali, olhei para trás e tinha Antonio Torres, Nélida Piñon, Cícero Sandroni, Carlos Nejar, todos contemporâneos. Ah, eles estão aí. E já tinha tido João Ubaldo e o Moacir Scliar, com quem andamos por esse país inteiro divulgando os textos jornalísticos que haviam sido censurados. Ah, se eles estão, quem sabe não é um anteparo para a gente continuar a fazer essa briga, principalmente nesta hora. Aí me candidatei. Deu certo. O que me surpreendeu enormemente e me emocionou foi a unanimidade porque é raro. Estou lá pensando no que fazer e como fazer.


O senhor também acaba de ser escolhido como intelectual do ano pela UBE... 


Eles estão mandando, eu aceito (risos). Isso quer dizer “Estamos de olho e você está indo bem”. Na hora que eu começar a não ganhar mais nada e nem falarem de mim, talvez eu me preocupe. Ou talvez não. Eu sigo fazendo o meu trabalho.


E como está a sua produção? Algum livro planejado?


Nada. Ainda não dá. Eu acabei de fazer um livro que me demandou quatro anos e meio e estou muito dentro dele ainda. Se você começa a escrever em seguida, você vai escrever as mesmas coisas, porque elas estão aí. Eu acho que o que está acontecendo é muito pior que no livro.


Mas continua escrevendo as crônicas para o jornal semanalmente.


Elas são uma necessidade que eu faço há 26 anos para o Estado e, agora, para A Tribuna, mas que é o que a gente chama de literatura sob pressão. No prazo, eu tenho que entregar. Algo que faz movimentar a cabeça. Eu tenho as minhas cadernetinhas de anotações, vou olhando tudo e anotando ali, que é de onde tiro as histórias. Adoro escrever crônica. É o que me segura neste momento e é gostoso de fazer. Posso fazer todas as críticas, o que quiser. Naquele estilo que parece leve, mas que é uma porrada.


Assim como em Zero, de 1975, e Não verás País nenhum, de 1981, o seu último livro tem como pano de fundo um país com corrupção política e problemas que vemos atualmente. O senhor já imaginava a situação de hoje quando escreveu? 


Esse livro foi lançado há um ano, na época da eleição. Imagine que ele já previa que é eleito o primeiro presidente sem cérebro do Brasil. Qualquer semelhança é mera coincidência. Não imaginava a situação, mas sentia alguma coisa. A gente já está um pouco acostumado, está curtido. Quem escreve não tem medo do absurdo. Se tivesse, não escrevia. Tudo o que eu inventei no Não verás está aí: aquecimento global, desertificação do Amazonas, a falta d’água... Mas não é que sou profeta. Sou um ficcionista. Sou um contador de história e não sei fazer outra coisa. Então, se o absurdo bloqueasse qualquer escritor, você acha que o Kafka tinha escrito A Metamorfose? Jamais um escritor de bom senso inventaria um homem transformado em um repulsivo inseto. Ele fez e modificou a literatura moderna. Eu não sou um criador grande como ele, mas eu faço minha parte.


O senhor teve textos e livro censurados nos anos 70. Como se sente vendo o AI-5 voltando à pauta das discussões públicas?


Eu falei isso também no meu discurso da ABL: sombras estão aí. Invasão da Bienal do Rio de Janeiro, cancelamento de exposições de arte, filtros culturais, pois os patrocínios têm que passar por um filtro para saber se não fala de transgênero, se não fala de ditadura. A censura está voltando e voltan-do rapidamente. Esse achincalhamento da Fernanda Montenegro, denegrir personalidades como Miriam Leitão, por exemplo, maravilhosa jornalista e corajosa. Essas coisas, elas vão corroendo. E de repente vem um sujeito e diz “ah, o AI-5" ou outro que diz “a gente entra com o Supremo e um soldadinho”. Não sabemos se é balão de ensaio ou se é arrogância, mas é uma época muito perigosa e eu acho que já vivi isso. E esse, certamente, nos meus 83 anos, é o presidente menos preparado, mais tosco, menos educado, sem a mínima compostura do cargo. Ele não sabe o que é o ritual de um estadista. Se indispõe com o mundo e parece uma briga de vizinhos que se odeiam. 


Qual o caminho que o senhor vê para a produção cultural?


Continua na linha da devastação. Não tem nem um Ministério, não tem quem cuide. Os patrocínios estão sendo todos acabados. Eles vão começar a tirar a publicidade. Isso acontecia durante a ditadura. Quem ia anunciar tinha medo de anunciar em um órgão que era contra o governo. E eles foram desaparecendo aos poucos. Eu acho que essa é a tática. Na época, eu tinha 40 anos. Agora, eu tenho 80. Será que eu tenho força? A minha lombar está reclamando (risos). Mas, enquanto a cabeça funcionar, o resto não tem como mexer.


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