Um dedo de prosa, por favor

Não sei se é impressão minha, mas me parece que as 24 horas do dia não têm sido suficientes para darmos conta de todos os compromissos

Por: Arminda Augusto  -  11/04/19  -  21:03
Namorados, conviventes, namoridos? Afinal, o que somos?
Namorados, conviventes, namoridos? Afinal, o que somos?   Foto: AdobeStock

Não sei se é impressão minha, mas me parece que as 24 horas do dia não têm sido suficientes para darmos conta de todos os compromissos. Alguma coisa sempre fica faltando e empurramos para o dia seguinte. Urgências e emergências atropelam tarefas rotineiras, e tudo parece ir embolando lentamente. Mas é curioso que sair desse círculo e se permitir olhar pra fora da bolha dá uma incrível sensação de bem-estar, e você até consegue voltar pra rotina mais leve. Como se alguém te dissesse: “Olha, o mundo lá fora é maior do que o seu”.


Um desses “refrescos” me permito tomar pela manhã, enquanto espero o 42 num ponto de ônibus da Afonso Pena. Ali fica a banca do seu Joaquim, um português pequenino, sempre de boina na cabeça, simples no vestir e no falar. Conversar com ele é mergulhar em qualquer universo, menos o da correria e da turbulência.


Descobri seu Joaquim há uns cinco anos, quando decidi não mais usar o carro para ir trabalhar. Pego o 42, o 23 ou o 152. Um dia, chovendo, em vez de ficar ali no ponto, resolvi subir na calçada da padaria e conhecer quem era o sujeito que ficava ali atrás do varal de revistas. Conheci seu Joaquim e, em pouco tempo, fomos travando uma afinidade. Sempre com cola nas mãos, esparadrapo nos dedos.


Um dia, invadi sua privacidade e perguntei que tanto de artesanato ele fazia todos os dias. Veio a surpresa: ele pega nos descartes da cidade aquelas cortininhas feitas de varetas, bem fininhas, e uma a uma elas vão se transformando em casinhas, capelas, castelos. Seu Joaquim é um verdadeiro artesão, mas não gosta de assim ser chamado. Depois de muita insistência, aceitou dar entrevista pro jornal, há alguns anos, e dali surgiram muitos convites para expor seus trabalhos.


A fama instantânea não lhe tirou a simplicidade. Com o passar dos anos nos tornamos amigos e enquanto o 42 não vem, muitas conversas já tivemos naqueles poucos minutos de interface diária. A prosa com ele vai de literatura espírita a família, passando pelas peripécias do neto mais velho, finanças, o tempo em que era gerente do antigo Eldorado, cidade, política, televisão, as aldeias de Portugal...


Hoje o 42 nos interrompeu bem na hora em que aprendia a fazer uma receita de bolachas de aveia. Seu Joaquim segue a “Ju Simplício” no YouTube e, como gosta de cozinhar, faz os próprios pães e bolachas. Manda pra família toda. Enquanto assistia no celular a cozinheira misturar ovos, aveia, óleo e farinha, conversávamos sobre a comida nossa de todos os dias, os temperos, os benefícios das refeições feitas em casa. Por uns instantes, todos os problemas que me acompanham rotineiramente sumiram. O 42 chegou e não vi como ficaram as bolachas de aveia depois de prontas.


Amanhã, o assunto já não vai ser esse, porque com seu Joaquim é assim mesmo: assuntos interrompidos não voltam à roda. Tem sempre conversa nova.


Esse insight diário e simples com pessoas que gravitam a nossa volta me faz lembrar de uma entrevista que fiz com o Pedro Bial anos atrás, quando ele estava no quarto ou quinto BBB. Perguntei a ele se não se sentia desconfortável em comandar um programa de entretenimento - que divide opiniões - depois de ter feito um currículo tão vasto nas coberturas jornalísticas internacionais, como a queda do muro de Berlim. A resposta me convenceu: “E quem disse que a vida é só hardnews? Precisamos de leveza também”.


Sim, Pedro, você tem razão. E o seu Joaquim também.


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