Thebas, o escravo santista que revolucionou a arquitetura paulistana no século 18

Por quase dois séculos, história de Joaquim Pinto de Oliveira foi tida como lenda; hoje, é reconhecido como um dos primeiros arquitetos de SP

Por: Sérgio Willians & Colaborador &  -  27/07/20  -  00:10
Thebas, o escravo santista que revolucionou a arquitetura paulistana no século 18
Thebas, o escravo santista que revolucionou a arquitetura paulistana no século 18   Foto: Ilustração: Padron

Vila de Santos, 1735. O menino negro Joaquim corria descalço pelas barrentas ruas do Valongo, chamado às pressas pelo mestre-pedreiro português Bento de Oliveira Lima, seu senhor. Segundo o que os companheiros de lida lhe disseram, o homem que detinha sua propriedade haveria de lhe dar uma ordem importante. Ao chegar diante dele, tomou conhecimento de que sua vida mudaria radicalmente.


Bento ordenou ao menino que separasse todas as suas coisas a fim de partirem no dia seguinte na direção da sede da Capitania Real de São Paulo, situada, como haveria de saber, no longínquo Planalto de Piratininga, distante quatro dias de caminhada de Santos. Depois de muito conversar com a esposa, Antônia Maria Pinta, Bento chegara à conclusão de que não havia como mais ganhar um bom dinheiro na vetusta vila portuária.


As obras escasseavam a olhos vistos e as grandes oportunidades estavam, de fato, na Capital, onde as ordens religiosas se mostravam ávidas por profissionais que pudessem levantar suas igrejas dentro de conceitos mais resistentes e modernos.


Bento até pensou em ir sozinho, deixando Joaquim para atender sua esposa, que ainda ficaria morando um tempo em Santos, até que ele conseguisse se estabelecer na Capital. Mas, pensando melhor, considerou levar o pupilo, que vinha se revelando cada vez mais habilidoso na arte de talhar pedras, um dom precioso àqueles tempos em que a arquitetura paulistana se mostrava sem graça e arcaica.


O garoto, batizado na igreja como Joaquim Pinto de Oliveira, tinha 14 anos e absorvera como nenhum outro rapaz da sua idade o ofício de moldar blocos de rocha bruta para a construção de edifícios. Sem imaginar o que viria a ser seu futuro, ele beijaria sua mãe, Clara Pinta de Araújo, também escrava da família de Bento, pela última vez, e partiria para sempre da cidade natal para viver uma experiência única, que o tornaria uma figura ímpar na vida da São Paulo setecentista.


O mito Thebas


Joaquim cresceu numa cidade que se desenvolvia lentamente em meio a uma paisagem permeada de edificações coloniais, a maior parte construída em taipa. Os clientes potenciais de Bento e seu pupilo, assim, não eram os moradores comuns (comerciantes, servidores públicos e prestadores de serviço), mas os grandes políticos (autoridades enviadas por Lisboa e militares) e, em especial, os religiosos.


Franciscanos, beneditinos e carmelitas começavam a investir pesado em seus templos, no intuito de atrair os fiéis (as ordens religiosas eram influentes na vida cotidiana e exerciam praticamente o papel do Estado em vários serviços, como batismo, casamentos e sepultamentos). Ostentar templos vistosos era estratégico na “concorrência” pelo arrebanhamento de potenciais “irmãos” (membros das irmandades religiosas abrigadas nas ordens).


Bento se valeu de seu conhecimento técnico e da habilidade latente do pupilo Joaquim. Assim, foram contratados pelos padres e ganhando fama à medida que suas obras ganhavam a paisagem paulistana. Joaquim, já adulto, ficou tão conhecido por sua capacidade de raciocínio para o trabalho, que ganhou um apelido culto: Thebas. O negro escravo, além de alfabetizado, possuía mais conhecimentos de técnicas construtivas do que a maioria dos homens cultos da Capitania.


As principais obras de Thebas em São Paulo foram as fachadas da Igreja da Ordem Terceira do Carmo (1777) e da Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco (1783). Também seria responsável pela construção da torre principal da primeira Catedral da Sé (1750) e do frontispício do Convento de Santa Teresa.


A mais destacada de todas, porém, fora o Chafariz da Misericórdia, talhado em pedra e com quatro torneiras, o primeiro chafariz público da história de São Paulo, que contava com sistema hídrico que canalizava as águas do ribeirão Anhangabaú. Ele fora construído e planejado por Thebas quando ele já estava alforriado, em 1793.


Liberdade


Alguns anos após a morte de Bento Lima, em 1769, aos 59 anos, Joaquim conseguiria obter sua alforria junto a um membro importante da Igreja da Sé, justamente quando ele se dedicava à construção da torre do templo. O seu ex-dono havia deixado dívidas e, para salda-las, a viúva Antônia teve de dispor de seus principais bens, incluindo os escravos, adquiridos pelo arcebispo Matheus Lourenço de Carvalho.


Entre 1777 e 1778, o religioso, em gratidão ao trabalho de Thebas, o alforriou. Há historiadores que afirmam que Thebas obtivera sua alforria comprando sua própria liberdade e outros que dizem que a liberdade constava em testamento juramentado assinado por Bento Lima. Falecido em 11 de janeiro de 1811, aos 90 anos, foi sepultado na Igreja de São Gonçalo (situado na atual Praça João Mendes, em São Paulo).


Origem do apelido


O apelido de Joaquim Pinto de Oliveira teria origem no conto da mitologia grega da Esfinge de Thebas (cidade do antigo Egito) que devorava os viajantes que não conseguiam decifrar o enigma por ele lançado: “Que animal anda pela manhã sobre quatro patas, à tarde sobre duas e à noite sobre três?”. A reposta era o “homem”, que engatinha na infância, anda sobre as próprias pernas na vida adulta e sobre o apoio de uma bengala na velhice. Com o desafio “decifra-me ou devoro-te” lançado , apenas Édipo acertou a charada, causando a morte da Esfinge. Assim, para os cultos do século 18, o apelido do escravo santista remete à agudeza e à perspicácia do engenhoso thebano que decifrou o enigma.


Reconhecimento


A história de Thebas se tornou uma lenda. Décadas depois, sem comprovação documental e testemunhas, sua existência passou a ser contestada. No final do século 19, o cronista José Jacinto Ribeiro levantou a história e tentou desnudar o “homem que tudo faz”. Em 1939, uma peça de teatro reavivou a lenda paulistana. Em 1974, a Escola de Samba Paulistano da Glória desenvolveu um enredo sobre a história da Sé e cantou o mito Thebas. Mas foi no novo milênio que o escravo santista ganhou notoriedade.


Em 2004, a 1ª Conferência Municipal de Cultura de São Paulo aprovou a criação da Semana Thebas de Ciências, Tecnologia e Educação. Em 2018, ele era registrado, de forma póstuma, pelo Sindicato dos Arquitetos do Estado como arquiteto profissional. No ano seguinte, foi tema de livro: Thebas, um negro arquiteto na São Paulo escravocrata, do jornalista Abílio Ferreira. No mundo virtual, até o Google reservou uma homenagem ao escravo arquiteto urbanista, em 30 de junho de 2020.
 


Sergio Willians é jornalista e pesquisador da História de Santos. Conheça seu trabalho no site www.memoriasantista.com.br


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