Santos, berço da tatuagem no Brasil

Dinamarquês Knud Gregersen, o Lucky Tattoo, fez da Cidade uma referência para a arte sobre a pele desde o final dos anos 1950

Por: Sérgio Willians & Colaborador &  -  13/07/20  -  00:44
Lucky Tattoo em seu ateliê em meados de 1960
Lucky Tattoo em seu ateliê em meados de 1960   Foto: Reprodução/Memória Santista

Santos, julho de 1960. Dois novatos marinheiros norte-americanos percorriam, no meio da tarde e à pé, a agitada zona da boca portuária santista, atraídos pela entusiasmada propaganda feita à bordo pelos colegas mais experientes e conhecedores dos mistérios e diversões da extravagante região boêmia do maior porto brasileiro. 


De repente, eles se viram atraídos pela vitrine de uma pequena loja situada no quadrilátero final do Paquetá, na Rua João Otávio, 2, quase na esquina da Rua General Câmara. Ao se aproximarem, reconheceram a língua natal estampada numa placa de madeira entre quinquilharias vendidas como suvenires. 


Nela estava grafado um anúncio: “It's not a sailor if he hasn't a tattoo” (não és um marinheiro se não tiveres uma tatuagem). Desafiados pela propaganda, os jovens decidiram que estavam prontos para se tornarem “adultos” no universo do mar.


Ao adentrarem no pequeno espaço comercial, foram atendidos por um sujeito que claramente não parecia ser brasileiro. Era um homem de grande estatura, cabelos claros e olhos azuis profundos, longe do estereótipo latino. A certeza da origem estrangeira se evidenciou quando ele os saudou num inglês carregado. Ostentando um sorriso malicioso, o atendente pegou uma pasta com vários desenhos e apresentou-a aos curiosos marinheiros. A imagem de âncoras era predominante na inusitada galeria oferecida pelo produtor de arte sobre a pele, o que chamavam de “tattoagem”.


Pioneiro na América do Sul


O homenzarrão que provocava os marinheiros era o dinamarquês Knud Harald Lykke Gregersen. Ele havia chegado um ano antes, desembarcando no cais em 20 de julho de 1959. A proposta era fazer algum dinheiro no País e zarpar para outras aventuras. Mas Lucky Tattoo, já contando com 31 anos de idade, se apaixonou pela agitada cidade portuária brasileira e resolveu fincar sua base em definitivo. Gregersen era o 1º tatuador em terras brasileiras.


Em sua bagagem, ele trazia uma história de vida repleta de aventuras pelo mundo e, principalmente, dos ensinamentos técnicos do pai, Tattoo Jack, que fora um dos mais conhecidos tatuadores da Dinamarca nos anos 1930 e 1940. Quando decidiu fincar raízes no Brasil, Gregersen adotou o codinome Lucky (sortudo, afortunado) na esperança de ser bem-sucedido na nova terra.


Uma arte desconhecida


Os brasileiros não conheciam a arte da tatuagem e os apetrechos necessários para que ela fosse possível. Isso causou certa apreensão no início. Na delegacia de imigração, por exemplo, ele teve que explicar aos agentes o que fazia com a estranha máquina de pintura com uma agulha na ponta. Apesar da incredulidade dos agentes, o dinamarquês teve sorte de eles não se importarem com o equipamento e o liberarem. Era Lucky dando as caras!


Gregersen logo alugaria a pequena loja na Rua João Octávio, 2, perto da área mais agitada das bocas, onde ganhou fama e passou a tatuar os estrangeiros de passagem pelo porto. Ele sabia que sua clientela mais potencial era mesmo o homem do mar, assim como em sua terra, a Dinamarca, lar ancestral dos vikings, povo que carregava culturalmente o costume de desenhar na pele.


“It's not a sailor if he hasn't a tattoo”. Este apelo logo ganhou fama na Cidade, ainda mais lastreado pelo personagem de desenho animado Popeye, que ratificava a máxima de que marinheiro de verdade tinha de ostentar uma bela tatuagem. Assim, Lucky foi ganhando aos poucos fama nacional e internacional. Fazia seu trabalho nos fundos da loja, reservando a parte da frente para a venda de suvenires, muitos coletados nos 42 países que percorreu antes de se fixar no Brasil. Além dos marinheiros, o local passou a ser frequentados por caminhoneiros, que iam até o estúdio para marcar o corpo com imagens de Nossa Senhora Aparecida, Jesus Cristo e cruzes para proteção.


Menino do Rio


O auge da fama de Lucky aconteceu nos anos 1970, quando passou a tatuar outra espécie de homens do mar: os surfistas. Um deles, o carioca José Artur Machado, o Petit, acabaria se tornando o símbolo de uma geração de jovens bronzeados de Ipanema, imortalizado por Caetano Veloso na música Menino do Rio, sucesso nacional na voz de Baby Consuelo. O “santista” Lucky Tattoo era o responsável pelo desenho de dragão em Petit.


Gregersen permaneceu por 20 anos em terras santistas e era um dos protegidos da boca. Um dia, um marginal desavisado resolveu assaltar seu ateliê. Foi capturado pelos “donos” do pedaço e castigado. Contudo, Lucky, desgostoso com o ocorrido, decidiu fazer suas malas e deixar Santos para nunca mais voltar. Primeiro rumou a Itanhaém e depois para Arraial do Cabo (RJ), onde faleceu no dia 17 de dezembro de 1983, aos 55 anos. 


A trajetória de Lucky Tattoo foi tão marcante que o 20 de julho, data em que ele chegou ao Porto de Santos, acabou escolhido para a celebração do Dia Nacional do Tatuador. Mais um pioneirismo na conta da nossa Santos, tão rica de histórias.



Sergio Willians é jornalista e pesquisador da história de Santos. Conheça seu trabalho no site www.memoriasantista.com.br


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