Era uma vez: Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos

Desde sua criação, a Humanitária cumpriu exemplarmente sua finalidade de dar guarida à classe dos empregados do comércio

Por: Sérgio Willians & Colaborador &  -  14/10/19  -  01:32

Na primeira quinzena de março de 1879, alguns empregados do comércio santista (conhecidos como “caixeiros”) se reuniram para fundar um clube literário, batizado com o nome do notório advogado, jornalista e abolicionista, Joaquim Xavier da Silveira (falecido quatro anos antes, vítima de varíola). Liderados por Augusto Vieira e pelo professor Antônio Manuel Fernandes (fundador e presidente da Escola do Povo, de 1878, um dos primeiros estabelecimentos educacionais da Cidade), o clube se traduziu na primeira experiência associativa a reunir os caixeiros da cidade de Santos. 


A ideia em homenagear Xavier da Silveira tinha uma lógica motivadora. O ilustre santista era dono de uma bem sucedida história pessoal, o que inspirava os ex-colegas empregados do comércio. Joaquim Xavier da Silveira, nascido em Santos em 7 de outubro de 1840, tinha quatorze anos quando começou a trabalhar como auxiliar de escritório e guarda-livros em uma loja da família, sendo um dos primeiros membros da Geração Caixeiral santista da década de 1850. Na tenra idade, era reconhecido por improvisar versos de rara beleza, utilizando constantes tonalidades de plangência (tristeza). Muitas vezes, aos domingos, punha-se ele descalço, chapéu de palha grosseira quebrado na testa, lenço ao pescoço, faca de ponta no cinturão de couro, e começava a declamar as suas rimas ao sabor da inspiração. 


Sua capacidade de oratória entusiasmava os colegas caixeiros, até que alguns uniram-se no intuito de ajudá-lo a tornar-se bacharel em leis, angariando recursos financeiros mensais para que Xavier pudesse realizar seus estudos na Capital. No fim do quarto mês de aulas, a mesada começou a encurtar, por conta das dificuldades encontradas por alguns prestamistas. Silveira, compreendendo o sacrifício dos amigos, que lhe permitiram galgar o primeiro passo, agradeceu o empenho e, delicadamente, dispensou a generosa contribuição, partindo para a busca de trabalho integral, logo obtido na escrita de casas comerciais paulistanas e como auxiliar num escritório de advocacia. 


Depois de formado, Joaquim Xavier da Silveira retornou a Santos e fez fama nos tribunais da Província. Seu exemplo de luta, então, mantinha acesa a chama do reconhecimento à capacidade dos jovens trabalhadores do comércio, uma vez que, dentre eles, poderia haver alguns outros com potencial de crescimento, a exemplo do “ídolo”. Assim, nada mais justo do que garantir-lhes também atenção especial, principalmente no tocante ao acesso à educação de qualidade e outros benefícios sociais. Fora esse o espírito que norteou a criação do clube literário, berço das ideias que culminaram na fundação de uma sociedade que tinha como missão primeira a promoção de garantias assistenciais à classe caixeiral, propiciando-lhe amparo nas ocasiões de dificuldade, com ênfase de socorro aos menos favorecidos pela fortuna.


A fundação da Sociedade Humanitária


Entusiasmados pelo sucesso das primeiras ações do clube, incluindo a edição de um jornal intitulado O Caixeiro, os jovens resolveram, então, criar, no dia 12 de outubro de 1879, um belo domingo, nas dependências da Escola do Povo, a Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio (SHEC). Estavam lá, reunidos, quarenta e um homens que, juntos, elegeram a primeira diretoria (provisória) da nova entidade, assim formada: Augusto Vieira, presidente; José Bento Fernandes, secretário e José Bernardes de Oliveira, tesoureiro. Aos pioneiros coube o desenvolvimento do primeiro estatuto social, rapidamente redigido e aprovado. O primeiro presidente com mandato da Humanitária foi Floriano dos Santos Castro, que contava com pouco mais de 21 anos de idade em 1879, quando assumiu o posto. 


A Biblioteca, o primeiro tesouro da sociedade


Foi na Assembleia Geral de 30 de outubro de 1880 que surgiu, pela primeira vez, a ideia de criação do que é hoje considerado o maior tesouro patrimonial da Sociedade Humanitária dos Empregados do Comércio: a biblioteca. Sugerido pelo associado José Francisco de Paula Martins, o projeto, aceito e aprovado na referida reunião, previa a montagem de um espaço de leitura e empréstimo de livros que pudesse oferecer oportunidade de conhecimento e lazer cultural aos membros da sociedade. Só para se ter uma ideia, já em 1887, o espaço reunia mais de 550 obras (para a época uma enormidade!), sendo a maior parte comprada com recursos próprios da sociedade e outra parte menor recebida em doação. Hoje, possui mais de 40 mil volumes.


As sedes


A Humanitária só foi ter sua primeira sede própria em 1891. Ficava na Rua das Flores, 256 (atual Amador Bueno). Em 1926, ela seria vendida à Curia Diocesana, e a entidade voltou a ocupar espaços alugados, até que em 1929 iniciou-se a construção da nova sede, cujas obras foram concluídas em outubro de 1931. Localizada nas imediações do Fórum, na Praça José Bonifácio, a edificação teve a assinatura dos arquitetos Frederico de Sabóia e Silva e Paulo da Silva Costa. 


Missão cumprida e novos rumos


Desde sua criação, a Humanitária cumpriu exemplarmente sua finalidade de dar guarida à classe dos empregados do comércio. Além da biblioteca, manteve atividades musicais (possuía uma das mais concorridas bandas da Cidade, criada em 1895), oferecia cursos diversos (inclusive de várias línguas, como francês e inglês), além de assistência médica e dentária. Um dos médicos mais famosos a serviço da Sociedade Humanitária foi ninguém menos do que o poeta José Martins Fontes.


Com a criação e o avanço das legislações trabalhistas, das assistências públicas à saúde e educação e o surgimento dos sindicatos da classe comerciária, a missão estatutária da entidade começou a ficar obsoleta. Nos anos 1940, a Humanitária já não tinha mais tantas tarefas focadas na classe e passou, então, por conta de sua força institucional, a contribuir na vida social e cultural da cidade.


Seu extraordinário salão de festas foi símbolo de épocas passadas, palco do primeiro estúdio da Rádio Atlântica (A Voz do Mar) e de bailes memoráveis. Sua biblioteca, tesouro imaterial santista até hoje encanta por conta de um acervo valiosíssimo, responsável pela formação intelectual de dezenas de gerações. E são essas duas pilastras preciosas as que sustentam, nestes dias modernos, esta grande e valorosa instituição, verdadeiro patrimônio histórico, cultural e sentimental da nossa Cidade.


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