Era uma vez... em Santos: Navio Recreio encalha sua trajetória nas areias

Ex-transatlântico, de nome Carl Hoepcke, era um velho conhecido dos santistas. Desfigurado e transformado em navio-boate, acabou destroçado por uma violenta tempestade em fevereiro de 1971

Por: Sergio Willians & Colaborador & Matheus Müller & Da Redação &  -  21/02/21  -  15:50
Irmãos guardam bilhete da viagem iniciada em 1955. Destino era Santa Catarina, para visitar o bisavô
Irmãos guardam bilhete da viagem iniciada em 1955. Destino era Santa Catarina, para visitar o bisavô   Foto: Vanessa Rodrigues

Santos, 24 de fevereiro de 1971, 22h30. A embarcação sacolejava de forma violenta no meio da tempestade que se formou repentinamente e transformou as estáveis águas do canal do Porto de Santos num mar revolto. O Carl Hoepcke, que outrora fora senhor absoluto de seu destino nos mares, agora tinha o nome de Recreioe prendia-se à existência tão somente por corroídas amarras de aço que, sofridamente, ainda o estabilizavam à âncora, presa no fundo lodoso da entrada da Barra


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Os poucos tripulantes a bordo, desesperados, não sabiam o que fazer, uma vez que lhes faltava experiência para agir diante de situações extremas. Impulsionada pelos fortes ventos em direção ao Sul, a embarcação, à mercê da própria sorte, acabou por romper a rigidez do aço, partindo-o como se fosse plástico.


O navio, enfim, se viu livre, mas não pareceu gozar uma liberdade triunfante. Sem contar com motores de propulsão, perdido, singrava as ondas como estivesse buscando, inconscientemente, sua ruína definitiva, avançando firme em direção à cidade santista.


Como uma besta enfurecida, o Recreioapontou sua proa na direção do Canal 6 e, impetuosamente, partiu na direção da terra. Subitamente, enquanto os poucos homens a bordo tentavam se segurar a qualquer coisa para não ir ao chão, um sacolejo mais forte produziu um forte rugido. Bum! Quem estava em pé, caiu. O navio-boate, enfim, ficou sinistramente imóvel, absolutamente inerte nas areias da praia urbana. A paisagem da orla havia ganhado um elemento inusitado, embora a maioria absoluta dos santistas, nem em sonho, imaginaria encontrar um navio encalhado em seu território de lazer na manhã seguinte.


Uma multidão se formara no calçadão da Ponta da Praia por conta da cena incomum. Curiosas, algumas pessoas se arriscaram a chegar perto do navio, querendo tocá-lo, como uma prova de ousadia. Inerte, o Recreiovoltava a ser o centro das atenções, tal qual nos seus tempos de glória, quando ostentava brilho e glamour e era o objeto de desejo de quem viajava entre Florianópolis (SC) e o Rio de Janeiro (RJ).


Um dia, ele fora um belo navio de passageiros. Agora, não era mais nada. A tripulação tinha conseguido abandonar a embarcação, aproveitando a maré baixa. As autoridades santistas, por sua vez, tentaram de tudo para devolver o intruso ao seu costumeiro habitat, o mar, sem sucesso.


Sentimentos opostos


Enquanto o Recreioagonizava silenciosamente nas areias da Ponta da Praia, as notícias do seu encalhe desfilavam pela imprensa na forma de notas curiosas sobre um navio-boate que findava prematuramente sua carreira. Poucos sabiam de seu passado repleto de nuances. A história inusitada daquele navio encalhado teve origem em 1926, quando ele tocou pela primeira vez o mar, na gelada baía da cidade polonesa de Elbing.


O Carl Hoepckefoi encomendado pelos descendentes de Carl Franz Albert Hoepcke, imigrante germânico que chegara a Santa Catarina em 1863 e lá fizera fortuna. Sua família seguiu o legado e tocou os negócios, que incluía o transporte de passageiros para a Capital Federal época e outros portos do Sul do País. O transatlântico de 62,4 metros de comprimento e 10,96 metros de largura carregava um motor de 12 mil cavalos (HP) e serviu a rota Rio-Floripa até 1956, quando sofreu um grave acidente ao sair do Porto de Santos. O barco se incendiou com 130 passageiros a bordo e o caso quase virou tragédia.


De cargueiro a navio boate


Depois do sinistro, os donos do Carl Hoepckeresolveram vendê-lo para uma empresa de transporte de carvão e madeira do Pará. Lá, a embarcação mudou de nome, para Pacaembu, e serviu nesta dura lida por quase dez anos. Numa de suas viagens, o motor do ex-transatlântico de passageiros não aguentou o tranco do trabalho pesado e pifou. O custo para recupera-lo não era viável. Decidiu-se por desmanchar o navio.


Mas o que ninguém esperava era que um engenheiro naval russo radicado em Santos, Wladimir Grieves, soubesse do caso e fizesse uma oferta pelo Pacaembu. Ele tinha planos de devolver parte da dignidade ao velho transatlântico, transformando-o num espaço de lazer para Santos: um navio-boate!


Depois de vendido por 50 mil cruzeiros, o ex-Carl Hoepcke, que conhecia tão bem as águas paulistas, reapareceu no mar santista. Sem motor, Grieves pretendia deslocar o barco por meio de rebocadores, de um lado para o outro do canal. Animado com a ideia de manter uma casa de divertimento flutuante, o engenheiro promoveu várias adaptações. No lugar da casa de máquinas, mandou fazer uma piscina. A chaminé virou caixa-d’água e a torre de comando foi transformada em mirante, com direito a bancos e mesinhas para os clientes. Depois de tudo pronto, o engenheiro rebatizou, em 1970, o velho Carl Hoepckecom um nome que sugeria sua nova fase: Recreio.


O navio foi mantido nas proximidades do Góes durante o verão 1970/1971, abrigando festas nos finais de semana. Conseguiu atrair muitos turistas em passagem pela Cidade. Dos apartamentos mais altos nos prédios da Ponta da Praia era possível ver as luzes e escutar o burburinho das pessoas no convés da boate flutuante.


O velho Carl Hoepckeparecia ter encontrado novamente um motivo para continuar seu brilho. Mesmo sem ter como locomover-se por conta própria e não ostentar o garbo de outrora, o antigo transatlântico voltara a ter uma função de lazer, oposta à condição nefasta do período quando navegava sob o pseudônimo Pacaembu. Porém, quis o destino pregar outra peça ao combalido navio. A tempestade de fevereiro de 1971, definitivamente, selaria o fim da embarcação.


Fim melancólico


O Recreioficou inerte nas areias da Ponta da Praia até agosto de 1972. Depois de praticamente desmontado por dentro, as autoridades portuárias resolveram aproveitar a maré alta para retirá-lo, com ajuda de rebocadores. Porém, ele insistia em não se desgarrar do chão. Foi necessário até o uso de dinamites para tentar “descolá-lo” da areia. O final da história foi triste, uma vez que o navio se partiu em vários pedaços e até hoje o fundo do casco repousa no local, como uma lembrança de uma história de glória e decadência.


Família Rodrigues viajou na embarcação em 1955


As lembranças vêm à mente de diversas formas: fotos antigas, músicas e objetos são alguns dos gatilhos comuns à memória. Para a família Rodrigues, no entanto, alguns sentimentos despertam com uma simples caminhada pela praia de Santos, próximo aos restos da embarcação Carl Hoepcke(conhecida por navio Recreio), que encalhou em 1971.


Os irmãos José Carlos Rodrigues, Luiz Aurélio Rodrigues e Ary Roberto Rodrigues já estiveram a bordo do navio quando crianças, com 10, 9 e 3 anos, respectivamente. A data era 22 de dezembro de 1955, com destino a Florianópolis (SC).


Junto aos pais, Ary e Iná, eles viajaram para visitar o bisavô, que já tinha mais de 90 anos e havia revelado o desejo de se despedir da neta. Luiz Aurélio conta que não lembra de o parente estar doente, mas havia essa situação e, então, o pai resolveu levar toda a família para o Sul do País. Além da viagem, ele lembra da mãe sorridente ao lado do bisavô.


Ele lamenta que, da embarcação, tenham sobrado apenas destroços, mas reconhece se emocionar ao ver os restos do navio.


O irmão mais velho, José Rodrigues, ainda guarda o bilhete daquela viagem, que marca o nome de todos da família, idade, profissão, a classe em que viajaram e o valor pago na época: 593,80 cruzeiros.


Segundo ele, apesar de o bilhete apontar a viagem de 1ª classe, a lembrança da navegação não é das melhores. Em resumo: muito enjoo e vento. Ele conta que os cinco ficaram com outros passageiros no convés do navio, apenas com uma cobertura disponível e com cadeiras espreguiçadeiras para descansar.


“Era um navio misto, que levava mais cargas do que passageiros. Na verdade, era um navio bem modesto, mas estava sempre lotado. Viajamos no convés por dois dias”.


José conta que o primo da mãe dele era imediato do navio (função abaixo do comandante), o que rendeu um convite para jantar com o comandante e demais oficiais. Esse momento o marcou, pois, passou mal durante a refeição. “Todos enjoaram. Voltamos para o convés e lá ficamos deitados”.


“Para você ter ideia, nem chegamos a ir ao refeitório (após o episódio). Acho que ficamos em jejum, só bebendo água”, lembra ele, que sofreu o mesmo na viagem de volta. “Foi bem complicado”.


Mesmo o mais novo dos irmãos, Ary, se recorda de algumas cenas da viagem. “Tinha 3 anos, mas ficou gravado (na memória) a imagem de ter viajado no convés e as cadeiras. Isso marcou”.


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