Dado indica que Santos registrou 98 casos de estupros de crianças em 2018

O silêncio dos inocentes: A cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas no Brasil. Um dos principais vilões é a conivência de quem deixa de denunciar

Por: Tatiane Calixto  -  22/08/20  -  23:34
Homem de 21 anos estuprou a enteada, de 8 anos
Homem de 21 anos estuprou a enteada, de 8 anos   Foto: Divulgação

O caso da menina de 10 anos que realizou um aborto legal, após ser estuprada repetidas vezes e engravidar do próprio tio, no Espírito Santo, jogou luz sobre uma realidade escondida atrás do silêncio e do descaso. Só na Baixada Santista, conforme dados do DataSus, 98 crianças de até 14 anos foram estupradas em 2018. Na última década, 111 meninas de 10 a 14 anos passaram por um aborto por razões médicas, espontâneo ou durante outra gravidez. 


>> VEJA GRÁFICO COM DADOS SOBRE ESTUPROS NAS CIDADES DA BAIXADA SANTISTA


Os números são tristes, mas não revelam a realidade, já que muitos casos nem chegam ao sistema de saúde. “Os casos de estupro e aborto envolvendo crianças acontecem com mais frequência do que as pessoas imaginam”, afirma Idalina Galdino Xavier, que já atuou durante anos como conselheira tutelar em Santos e trabalha em projetos ligados ao tema.


Ela cita um dado impactante do Anuário de Segurança, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública no ano passado: a cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas no Brasil. 


“Embora as pessoas possam achar esses números absurdos, existem casos terríveis que nem notificados são”. Idalina conta que a maior dificuldade do Conselho Tutelar e dos órgãos de proteção para fazerem frente a essa violência, ou conseguirem acolher de forma correta a vítima, é o silêncio de quem prefere não denunciar.


“A família silencia, o vizinho acha que não tem nada a ver”. E, no fim, a criança sofre.


A subnotificação é muito grande. Então, estamos falando de uma epidemia e, infelizmente, a sociedade ainda não enxergou isso”, lamenta Luciana Temer, diretora presidente do Instituto Liberta, que tem como missão o enfrentamento à exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil.


Machismo


Segundo Luciana, levantamentos mostram que 72% dos casos de estupro acontecem dentro de casa e os agressores são, na maioria das vezes, parentes ou têm relação próxima com a criança. Por isso, o silêncio torna-se ainda mais difícil de ser transposto porque o crime é intrafamiliar.


“Os meninos também sofrem com o abuso, mas 92% são meninas. Isso mostra que essa questão também tem ligação com a sociedade machista e patriarcal que acredita que as crianças, e principalmente as mulheres, são propriedades dos homens”. 


Pandemia


E se a maioria dos casos de estupro acontece dentro de casa, o confinamento necessário para proteger a população contra a pandemia da covid-19 trouxe uma situação perversa. “Neste momento de distanciamento social, muitas vezes, vítima e agressor estão isolados no mesmo ambiente”, afirma Leonardo Carvalho, coordenador do Instituto Sou da Paz. 


Segundo ele, os registros de estupro vinham subindo, situação que mudou com o novo coronavírus. A questão, explica Carvalho, é que isso não reflete, necessariamente, que menos pessoas estão sendo vítimas de estupro. Mas pode apontar que menos vítimas estão conseguindo fazer o registro da violência sofrida. 


Escola tem papel central contra o abuso sexual


“A gente sabe que instituições de Educação têm um papel muito importante na detecção destes crimes e com essa nova realidade por conta da pandemia, as escolas estão fechadas. Por isso, estamos preocupados com essa redução. Esse é um ponto bastante sensível porque a subnotificação é bem presente”, avalia Leonardo.


A escola é um canal importante na luta contra a violência sexual, considera Luciana Temer, diretora presidente do Instituto Libberta. É lá que a criança encontra um adulto responsável em quem confia. “A escola é fundamental para identificar o abuso e também ensinar a prevenir, disseminando informação. Às vezes, o crime acontece tão cedo que a criança nem sabe o que é”.


Proteção


Idalina diz que o caso da menina do Espírito Santo reacendeu as discussões sobre aborto quando, na realidade, deveria fazer a sociedade pensar na criança. Por isso, mais do que o acolhimento correto, realizado por profissionais especializados, é preciso evitar que o abuso aconteça. 


"O sofrimento das crianças vítimas de abuso sexual é gigante. Deixar a menina ser estuprada e depois discutimos o aborto, se é certo ou não? Essa discussão não tem sentido nenhum, se não pensarmos que as meninas estão sendo violentadas”. 


Desta forma, tanto para Idalina como para Luciana, todos precisam se envolver nesta luta (veja infográfico). “Procura a polícia. Se não quer procurar a polícia, liga no Disque 100. E dentro de casa a melhor forma de falar é: meu filho, qualquer desconforto em relação a qualquer pessoa, me fala. Esse laço de confiança é importante. E principalmente, é acolher a criança. É preciso entender que se a criança diz, alguma coisa está errada, mesmo que não seja o abuso em si. Apesar que, na quase totalidade dos casos, a criança está certa”, revela Luciana. 


Potencial para o mal


Quando tinha 9 anos, a técnica de enfermagem, hoje com 27, sofreu o primeiro abuso do padrasto. O homem que ela, até então, considerava um pai, passou a fazer coisas que ela não entendia, mas sentiu que era errado. A partir dali, a vida da menina virou um pesadelo. "É uma situação que marca a vida para sempre. Sua inocência é corrompida brutalmente.


Pior ainda quando vem de uma pessoa que você tem laço afetivo”, conta. Sob as ameaças do agressor, ela calou durante muito tempo até que resolveu quebrar o silêncio. “Contei para a minha mãe. Mas ela não acreditou. Eles são bons manipuladores, sabem usar as palavras. São pessoas que têm um potencial acima da média para o mal”. Ela só conseguiu se salvar da situação ao sair de casa, com 14 anos. Acolhida pelo Conselho Tutelar, recebeu ajuda psicológica e afeto. “Graças a Deus, hoje eu dei a volta por cima e sou vitoriosa. Porém se não tivesse o apoio psicológico que tive, talvez tudo isso fosse diferente.


Deus colocou anjos no meu caminho para estancar um pouco desta dor”. Por isso, ela diz que educação sexual e orientação para as famílias são pontos importantes. “Perceber mudanças repentinas no comportamento da criança e, acima de tudo, ter muito cuidado quando busca um parceiro ou então ao receber amigos onde seus filhos possam estar expostos” 


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