A vida e a luta de Marias do Monte Serrat são homenageadas em mural

Cinco mulheres, cinco guerreiras do morro ganham reconhecimento da própria comunidade por suas histórias e vitórias

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  10/01/21  -  16:57
  Foto: Alexsander Ferraz

Um muro, no sopé do Monte Serrat, em Santos, recebe impressa a face do amor. Ela responde pelo nome de Maria do Socorro Pinto e Araújo, tem 58 anos, e é uma das cinco mulheres do morro, todas Marias, homenageadas no mural Retrato, uma produção cultural do projeto Muito Prazer, Meu Nome é Hip Hop (leia mais abaixo).


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Se Maria é amor e está no mural, o amor é o homenageado. É por esse amor que dona Maria vem há 26 anos carregando nos braços, morro abaixo, morro acima, por quase duzentos degraus, a filha Joyce, paralisada pela microcefalia. Por esse amor, traduzido na voz do povo do Monte por “guerreiro”, seu rosto foi lembrado, e escolhido, para ser um dos cinco no mural. Mas essa história começou há muito tempo, ainda nos anos 1970.



Como boa parte dos 1,6 mil moradores do Monte Serrat hoje, a raiz de dona Maria está em outro tempo, outro lugar: no sertão do Ceará. Foi em Jamacaru, distrito de Missão Velha, no sopé da Chapada do Araripe, que aos 10 anos começou na roça da família catando feijão e algodão ou ‘pastorando’ a terra – que nada mais é do que espantar os pássaros ávidos pelas sementes recém-plantadas. Com os braços abertos, correndo e gritando, o trabalho é sério, mas para uma criança vira brincadeira e razão para uma saudade.


Nem ovo para comprar


A saudade é difusa: a diferença entre o perde e ganha da vida. Órfã de pai, tinha no irmão mais velho o arrimo. Já corria à boca pequena em Jamacaru histórias dessa cidade do Litoral Paulista, desse morro tranquilo, aos pés de uma Nossa Senhora, e das oportunidades que esse lugar oferecia. Aos 18 anos, Francisco, o irmão, resolveu apostar em Santos e levou mãe e irmã. “Sentia falta da cidade, das pessoas, mas às vezes não havia um ovo pra comprar, faltava muita coisa. E lá não tem trabalho, é só roça”.


Amor, quando está longe, também se chama saudade. Na mudança, dona Maria levou o coração de José Rodrigues de Araújo, hoje com 59 anos. Naquele distante 1976, ele era apenas um garoto de 16 anos e ela uma menina de 14. “Não éramos bem namorados: a gente ficava, como dizem hoje”, gargalha dona Maria.


Com um buraco no lugar do coração, José seguiu a vida na roça, sonhando com Santos. Ao completar 18 anos, ele foi ao encontro de seu futuro. “Vim por causa dela. Tinha muita saudade”.


Sonho que se sonha junto


Do reencontro ao casamento, só faltava uma casa. O terreno já lá estava, na altura da sexta estação da Paixão de Cristo, nas escadarias do Monte Serrat, próximo à casa do irmão e da mãe. José trabalhava na construção civil, como fez em boa parte de sua vida.


Na firma, conseguiu sobras de ripas e materiais, arregimentou os colegas carpinteiros e colocou as mãos à obra. “Ela (dona Maria) fazia uma linguiça, uma salsicha, a gente tomava um conhaque e ia em frente”, sorri.


Logo, o abrigo do sonho se materializou. Foi o tempo de descerem o morro para dizer ‘sim’ um ao outro na Catedral. Depois, subiram de novo para a festa, no único salão possível: a própria casa – onde também viveram a lua de mel.


Benditos frutos


O amor de José foi para Maria uma ponte a outros amores. Primeiro veio Josiane, hoje com 33 anos. Depois Joyce, com 26, para mudar completamente a vida da família. “O dinheiro sempre foi curto”, diz dona Maria. O trabalho dela, necessário para completar a renda do marido, precisou ser adaptado para acomodar a dedicação à Joyce.


Assim, o emprego em tempo integral, e quase sem férias, em uma fábrica de roupas, onde era a única que desenhava os bolsos das calças jeans, deu lugar a um trabalho em meio período numa casa de família. Quando Joyce cresceu e o meio período já era período demais, conseguiu trabalho em uma ótica, três vezes por semana, pela manhã.


Todos os dias, com Joyce nos braços, saía rumo à esperança, fosse na escola que a menina frequentou por sete anos, na fisioterapia, na natação, na equoterapia. “Tudo o que havia para ela, eu corria atrás”.


O tempo passou, hoje não há mais nada a ser feito. Mas é quase sempre dona Maria, 53 quilos, quem ainda carrega Joyce, 50 quilos, pelas escadarias, quando é necessário um médico ou dentista. A força, ela não sabe de onde tira. Suspeita-se: do amor.


“Fiz o que eu tinha de fazer. Não porque sou uma guerreira”, diz, sem entender o motivo de ser homenageada no mural por essa dedicação. O tom prático, porém, se esvai ao tomar nos braços o símbolo de sua fé, uma imagem de Nossa Senhora, e abrir o coração. “Sonho com ela (Joyce) ficando bem, curada. Mas sei que não vai acontecer, né?”


A vida levada à arte


O projeto Retrato ganha vida pelas cores das artistas urbanas Aline Benedito, a Fixxa, Cleomar Moreira, a Cleo, e Lia Ramos, a Lia Fênix. As três fotografaram as homenageadas, com objetos e em lugares de suas casas que melhor caracterizam a sua vida. Essas fotos servem de base para o mural.


Segundo elas, mulheres retratando mulheres permitiu que elas se reconhecessem em muitas das dificuldades vividas pelas Marias. “São histórias muito fortes. Só tenho a agradecer por estar contando essas histórias”, observa Lia Fixxa.


Ao voltarem da imersão nessas histórias, trouxeram consigo um punhado de reflexões. “Não tem como conhecer outras mulheres e sair em branco. De ver que as adversidades não as abalam”, analisa Lia Fênix, que é de Sorocaba – Fixxa é de Santos e coordena o projeto.


Cleo, da Capital, se reconheceu na comunidade do Monte Serrat. “Moro numa quebrada, vi aqui as mesmas pessoas e a mesma força do coletivo, de uns apoiarem os outros. É uma questão de sobrevivência”.


As Marias


Originalmente, o projeto homenagearia mulheres guerreiras. Quando elas foram escolhidas, percebeu-se a coincidência: todas eram marias, como a Maria mãe de Jesus, que habita a capela, no alto do Monte. Além de Maria do Socorro, são elas: Maria Josélia Oliveira, 76 anos, Maria Francisca da Silva, 79, Maria Neuma Gomes Clemente, 59, e Maria Cícera de Lima da Silva, 61. O projeto é desenvolvido via Secretaria de Cultura de Santos, a partir de dotação do vereador Ademir Pestana (PSDB).


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