Sônia Fuentes: 'O mundo tem muitos estímulos. Impossível lembrar de tudo'

Psicóloga e especialista em Gerontologia dá palestra sobre hábitos que estimulam o cérebro a pensar

Por: Da Redação  -  03/04/19  -  16:10
  Foto: Silvio Luiz/AT

“Há algo na velhice capturável a quem souber olhar; basta observar os velhos atentamente. Como se alguma coisas e descortinasse por meio de seu olhar quase estático: às vezes, há doçura e alegria nesse olhar; outras vezes, dor, nostalgia, amargura e cansaço. O certo é que o olhar do velho parece reconhecível, indisfarçável, irretocável; enfim, revelador de muitas coisas”.


Assim escreve no prefácio de seu livro Tecendo o chamado de Atena e Aracne a psicóloga Sônia Fuentes, mestre em Gerontologia, ciência que estuda o processo de envelhecimento em suas dimensões biológica, psicológica e social. Sônia esteve em Santos recentemente, convidada da Associação Atlética Banco do Brasil a fazer palestra sobre a memória e a criatividade nas pessoas idosas. Mas na plateia não havia apenas pessoas idosas, mas um público variado, preocupado com o envelhecimento e como torná-lo mais saudável diante de uma expectativa de vida que só cresce nas últimas décadas. Sônia deu um recado animador: falhas de memória não são, necessariamente, sinais de doença. Recado dois: é possível cultivar hábitos simples durante a vida para preservar a memória e manter a mente ativa e viva na velhice.


Para o público que foi à palestra, Sônia Fuentes falou sobre hábitos simples que fazem toda a diferença, como fazer exercícios físicos regulares (uma caminhada, por exemplo), ouvir música, ler algo de que se gosta, ser seletivo com o excesso de notícias ruins que nos chegam todos os dias pela mídia (“segure a curiosidade”, disse) e fazer coisas diferentes. Por “coisas diferentes” Sônia sugere escolher um caminho novo para ir a lugares conhecidos, observar a cidade em um passeio. “Eu diria que 80% das nossas tarefas diárias são rotineiras. Então, é preciso fazê-las de forma diferente para estimular o cérebro a pensar”.


Lapsos de memória são comuns até entre as pessoas mais jovens, avisa a psicóloga. Eles só devem se tornar uma preocupação se forem muito frequentes, especialmente com as tarefas importantes do dia. Nesta entrevista, ela fala sobre outras interfaces da memória ao longo da vida e como preservá-la em um mundo cada vez mais estimulado.


AT - Mesmo antes de se chegar à Terceira Idade é preciso já ir estimulando a memória? A partir de que idade, essa preocupação deve ser estar presente na vida?


Essa é uma tarefa que começa na infância, pelos pais. Não só a memória, mas o estímulo à criatividade. E quando falamos em estimular a memória, estamos falando não só de exercícios específicos, como também cuidar da saúde, da alimentação. Exercícios físicos, que as pessoas às vezes acham que é só para o corpo, também fazem parte de cuidar da memória e das funções do cérebro.


AT - Hoje, especialmente quando se é idoso, esquecer logo já é associado ao Alzheimer.


Os esquecimentos, os lapsos de memória são normais ao longo da vida. Estamos vivendo em um mundo com muitos estímulos. Impossível lembrar de tudo. A memória vai assimilar aquilo que é mais significativo e importante. Então, eu diria que 90% das coisas relevantes e importantes a gente lembra porque ficou guardado na memória. Devemos começar a nos preocupar se nem as coisas importantes estiverem sendo guardadas, mas de forma repetitiva. Por exemplo, esquecer sempre de tomar os remédios, esquecer sempre os nomes das pessoas próximas a você, sendo que isso não era antes uma falha, aí, sim, o sinal de alerta deve acender.


AT - Você falou que estamos hoje submetidos a muitos estímulos. O excesso de informação, de todos os lados e o tempo todo, atrapalha? Como lidar com essa sensação de que não estamos conseguindo acompanhar tudo?


Sim, estamos hiperestimulados. É preciso se policiar e pensar: no que essa informação vai acrescentar alguma coisa ou me ajudar? Veja o episódio dos meninos na escola de Suzano. Foi o dia inteiro aquilo em todos os veículos de comunicação. Eu tive três pacientes no meu consultório que tiveram insônia naquela semana porque se viram bombardeados com tanta informação pesada, ruim. É preciso segurar um pouco a curiosidade e entender que o excesso, de alguma forma, poderá te prejudicar. E eu não estou falando só da mídia convencional, mas das redes sociais também. Não é só a memória que uma hora já não vai assimilar, mas você vai acabar ficando estressado, tenso. Preserve a si mesmo é a recomendação.


AT - Existe alguma diferença entre quem mora em grandes centros urbanos e quem mora no campo, em locais mais tranquilos?


Olha, já existem pesquisas comprovando que quem mora em centros urbanos tem 70% de chance de ter algum problema de memória ao longo da vida. Mas não é uma regra. Nada é uma regra, é apenas um estudo. Então, vá para o parque, fuja para a natureza de vez em quando, procure áreas verdes, locais em que você esteja mais próximo do meio ambiente. Pelo menos de vez em quando. E também a alimentação que entra em você, como a alimentação, por exemplo.


AT - Mas quem trabalha, seja em que área for, se sente pressionado a estar sempre conectado, sempre disponível para a comunicação. Como lidar com esse diferencial do mercado de trabalho, da conectividade 24 horas por dia?


Sim, é preciso se organizar pra isso, principalmente antes de dormir, quando a mente deve estar relaxada e livre. Uma hora antes de dormir, tome um banho, relaxe, não queira absorver mais nada. Escute uma música relaxante. Pesquisas já têm sido feitas relacionando essa questão da memória x meditação. Focar na atenção plena, nos bons pensamentos. As pessoas não fazem ideia de como isso também é benéfico para preservar a memória.


AT - Em relação à criatividade, como é que se estimula? Existem pessoas criativas e pessoas não criativas?


A criatividade está dentro de todos nós. Nem sempre temos a oportunidade para trabalhar isso. Se você observa um bebê quando está se descobrindo, descobrindo seus pés, suas mãos, o movimento, ele tem o ar da curiosidade que ao longo da vida vamos perdendo. Com o passar dos anos, vamos fazendo as tarefas cotidianas de forma mecanizada.O escritor budista Thich Nhat Hanh fala muito sobre isso em seus livros, sobre a gente presentificar o momento. Porque hoje comemos sem prestar atenção ao sabor, olhamos sem ver, tocamos sem perceber. Presentificar é viver os cinco sentidos com mais qualidade, refinar os sentidos. Isso é estimulara criatividade.


AT - Existem muitos idosos que vivem sozinhos, os filhos quase não ligam, não visitam... Como esse idoso se autoestimula?


Isso serve para todo mundo, não só para os idosos. Temos que desvincular essa ideia de que a família ainda é como antigamente, todo mundo junto, se cuidando permanentemente e apenas uma pessoa trabalhando. Hoje todo mundo tem que trabalhar. Os idosos que se veem sozinhos precisam se apropriar do que gostam de fazer, procurar prazer entre tantas ofertas que existem. Fico feliz em ver que muitas iniciativas existem por aí, de movimentos dirigidos à socialização entre os idosos.


AT - Há muita informação e desinformação sobre o papel dos alimentos como estimulantes da memória. O que podemos dizer de certo sobre isso?


Água é o básico. 70% do cérebro é água. A gema do ovo, vinho com moderação (uma taça por dia), frutas oleaginosas (castanha do Pará, amêndoas, por exemplo), verduras, peixe, por exemplo.


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