Há 150 anos começava em Santos o processo de levar encanamento às casas

A chegada de água encanada nas casas santistas obedeceu a uma confluência de tecnologia à disposição com a necessidade batendo à porta

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  01/03/21  -  01:01
Um bueiro na Rua do Comércio, não carrega esgoto, mas é o próprio leito do ribeirão
Um bueiro na Rua do Comércio, não carrega esgoto, mas é o próprio leito do ribeirão   Foto: Alexsander Ferraz/AT

O famoso ilusionista Harry Houdini nem era nascido, mas abrir o que parecia uma torneira, em uma augusta residência santista naquele longínquo 1872, e ver água límpida jorrar abundante era como um ato de magia. Foi justamente essa mágica que começou a ganhar corpo, mas pelos truques nada ilusórios da engenharia, em 1871 – há exatos 150 anos.


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A chegada de água encanada nas casas de Santos obedeceu a uma confluência de tecnologia à disposição com a necessidade batendo à porta – aliás, a combinação que sempre fez, e faz, o ser humano avançar. Ainda em fevereiro de 1870, a Câmara de Santos contratou a empresa Melhoramentos para cuidar desse serviço – a firma também acabaria responsável pela iluminação pública a gás.


Após os estudos, um ano depois os trabalhos começaram na prática. Definiu-se que parte da água seria captada bem longe, no Rio das Pedras, hoje no perímetro de Cubatão, mas naquela época um dos rincões de Santos – fica a 17 quilômetros do Centro. Uma das medidas necessárias foi a implantação de reservatórios, cuja posição deveria ser calculada para que conseguissem abastecer as casas mais altas.


Em 15 de julho de 1872, foi inaugurado o novo serviço de abastecimento. Mas, calma lá: um olho no peixe, outro no gato. A novidade era o pontapé inicial do encanamento privado, mas nem todas as casas assistiram ao milagre de ver a água saindo da parede de uma única vez. 


Assim, o contrato com a Melhoramentos também previa cuidar dos chafarizes – a forma de abastecimento principal – e ampliar o seu número pela Cidade. Cada um deveria receber 12 mil litros de água por dia. Água pura. Artigo que andava raro na época e maior motivação para a renovação do sistema de abastecimento. 


Crescimento


Mais rápido, mais lento, toda cidade cresce. Em 1822, a vila de Santos tinha quase cinco mil habitantes. Cinquenta anos depois, na época do novo sistema de abastecimento de água, a população tinha quase dobrado e chegava à marca de 9 mil almas, distribuídas em cerca de mil casas. 


“A Cidade vinha crescendo e ganhou mais impulso com a estrada de ferro (São Paulo Railway, a Santos-Jundiaí, de 1867). Aumentaram muito as oportunidades no Porto e oportunidades atraem as pessoas”, resume o jornalista e pesquisador da História santista, Sergio Willians. Ele também é editor do Almanaque de Santos, em que se baseia parte da pesquisa dos dados históricos para esta matéria 
Se oportunidades atraem pessoas, muitas pessoas juntas clamam por mais estrutura urbana.


Especialmente em um quesito capital à sobrevivência como a água. Na época, o abastecimento estava na era dos chafarizes. Havia entre 30 e 40 pela Cidade. Eles eram supridos pelos ribeirões que circundavam Santos, sendo os principais o do Carmo, São Bento e São Jerônimo (sobre este, leia mais ao lado). 


Com o impulso de crescimento da Cidade, a poluição começou a sufocar os ribeirões. A qualidade da água começou a declinar, tanto nos chafarizes quanto nos poços artesianos, nas residências.


“Começamos a ter surtos de coqueluche, peste bubônica e epidemias desencadeadas pela falta de saneamento básico”, aponta Willians. 


Saneamento é tudo


Nas questões epidêmicas, o abastecimento de água potável é apenas um dos lados da moeda. O outro é o saneamento, como bem lembrou Willians acima. Aliás, a falta de saneamento é a principal causa da impureza nas águas e abre as portas para uma miríade de doenças. 


Por exemplo, logo em 1873, um ano depois do novo serviço de água entrar em operação, Santos enfrentou uma grande epidemia de febre amarela, que só não foi pior justamente por causa da água de boa qualidade nos chafarizes e em algumas casas. 


Em uma cidade com quase 10 mil habitantes na área urbana, que lançavam seus dejetos em fossas caseiras ou os guardavam em jarros para depois serem descartados na praia ou nos ribeirões, era impossível não ser assolado por pestes de todo o tipo. Era questão de tempo até a próxima epidemia.


Mas foi só em 1892 que a Cidade contratou o engenheiro norte-americano Estevan Fuertes, da Universidade de Cornell, que havia sido responsável pelo saneamento em Nova Orleans, área com mangues e regiões alagadiças, similar a Santos. Três anos e vários croquis depois, em 1895, surgiu o Atlas do Saneamento da Cidade e Porto de Santos.


Por motivos obscuros, o Atlas não foi levado adiante, mas certamente deve ter servido de inspiração para Saturnino de Brito, pouco mais de uma década depois, implantar o saneamento em Santos. Mas esta já é uma outra história. 


O futuro à consciência pertence


O leitor deve ter notado que o início e o mote desta reportagem tratam sobre o passado do abastecimento de água em Santos. O infográfico abaixo mostra como os imóveis da Cidade recebem hoje a água de cada dia. E o futuro? O que é preciso ser feito – ou deixado de lado – para que o abastecimento jamais seja prejudicado? 


“É necessário ter consciência do uso da água. É necessário entender que, especialmente em tempos de crise hídrica, as pessoas não devem, por exemplo, lavar as calçadas”. Quem responde é Fernando Luiz Camacho Martins, gerente do Centro de Controle Operacional da Sabesp na Baixada Santista. 


O período climático de estiagem na região vai de maio a agosto. Dependendo da gravidade da seca, o risco de faltar água é grande. “Ano passado, em Guarujá, vivemos a pior estiagem em 20 anos”, contabiliza. 


Submoradias


Uma chaga social que coloca em risco o abastecimento é a existência das submoradias. Pela característica regional, muitas delas estão localizadas às margens de rios, ribeirões e braços de mar. 
Que o lixo polui as águas e compromete sua qualidade, já sabemos por conta do passado santista. No presente, ele torna o tratamento da água mais lento, portanto mais custoso, e com maior risco de faltar o líquido na torneira. Além disso, há um componente a mais nesses casos: as ligações clandestinas. 


Por não estar registrada, essa água simplesmente desaparece e sobrecarrega um sistema preparado para trabalhar por uma certa demanda. “Se o consumo médio mensal na região é de 15 metros cúbicos, nas favelas pode chegar a 33”, calcula Camacho, que conclui: “Para que sempre tenhamos o abastecimento, é preciso trabalhar na questão da sustentabilidade no que tange à água”. 


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