Perequê é um dos últimos redutos caiçaras na Baixada Santista

No bairro de Guarujá, a vida flui pelo mar. Tudo gira em torno da pesca

Por: Eduardo Brandão & Da Redação &  -  24/07/19  -  21:29
Bairro reúne a maior colônia de pesca de Guarujá
Bairro reúne a maior colônia de pesca de Guarujá   Foto: Carlos Nogueira/ AT

O sol ainda nem mostrava seus raios e o pescador Waldonir Bibiano dos Santos, 61 anos, já se postava para a jornada. O café tomado às pressas servia tanto para espantar o frio do fim de madrugada, como de estímulo ao trabalho que viria. Entre a revisão das cordas e os remendos nas redes, que depois de tantos anos lhe renderam calos nas mãos grossas, ele olhava o mar, tentando entender seus recados.  


“Ainda não está bom para a pesca. Só vai melhorar a partir de amanhã [nesta quarta-feira]. Até lá, tenho muito trabalho para deixar o barco pronto”.  


O trabalho é duro. Mas torna-se mais leve quando feito em grupo, entre uma brincadeira ou outra dos pescadores unidos para se ajudarem. Essa camaradagem dá o tom da convivência naquela que é a maior colônia de pesca de Guarujá e um dos últimos redutos da vida caiçara nas cidades centrais da região: o Perequê.  


A Associação de Pescadores do Perequê (Aspe) tem cadastradas 283 pessoas que tiram do mar o seu sustento. Mas o número pode chegar a 1,5 mil, conforme estimativas dos próprios trabalhadores. “Tudo aqui gira em torno do mar”, diz o presidente da entidade, Fábio Luiz Laurendo. 


Encantos   


A pesca, aliás, é a principal fonte de renda da comunidade, seja para a venda de pescado ou às dezenas de restaurantes especializados no que vem do mar. O bairro também tem se firmado como centro de atividades recreativas, como passeio náutico e pesca esportiva.  


Entender a natureza é parte do desafio de ser um pescador artesanal. “A pescaria tem muita ciência popular. É preciso entender os caprichos do mar. É coisa que se aprende na prática, na água”, afirma Santos.  


Nada de apetrechos tecnológicos ou sensores modernos para indicar por onde andam os cardumes. Na comunidade, tudo é baseado na leitura feita pelos caiçaras. Tradição passada de pai para filho. “A cor do mar, o vento, a temperatura da água... É assim que a gente sabe se tem ou não peixe”, explica Paulo Renato da Silva Souza, o Gaúcho, 57 anos, 25 deles no Perequê.  


O apelido revela a sua origem. Por essa razão, ele faz parte da turma conhecida como “catarina”, grupo formado por pescadores de comunidades ribeirinhas de outras localidades do País. Os “locais” se reconhecem como caiçaras.  


Apesar das dificuldades e do baixo pagamento pelo pescado cada vez mais escasso, a vida à beira mar é uma espécie de vício entre eles. Não há jeito melhor que a de buscar no mar o sustento. “Trabalhei um ano com carteira assinada. Aquilo não era forma de viver. Patrão na orelha, amolação. Aqui é ligar o motor e sair. É você, o mar e Deus. Ninguém para te amolar, te mandar embora. Você faz sua jornada”, continua Santos.  


Humores do mar   


A autonomia profissional tem seu preço: é a natureza que regula as saídas. “Tem dias que a gente sai uma da manhã, cinco da manhã. Depende das condições”, afirma Souza.


Independentemente da partida, o retorno ocorrerá no fim da tarde. E é aí que o trabalho se intensifica. O pescado tem que ser limpo, separado, pesado e encaminhado para o comprador. “A gente faz o pesado, e o atravessador lucra. Não tem outro jeito”, queixa-se.  


Após dar um destino à produção, a segunda etapa do ofício: reparar os estragos nos materiais e fazer manutenção periódica nas embarcações. “Quem regula as férias do pescador é a natureza. Quando o tempo está bom, não tem domingo, feriado: a gente cai no mar em busca do sustento”. 


A palavra 


Perequê tem origem tupi e é formada pelas expressões pira e ike, que significam “entrada de peixe para alimentação”. O batismo da comunidade se deu pelo pequeno rio que deságua na praia, “o rio do peixe”. Quando a maré enche, algumas espécies e siris invadem a vazante, sendo facilmente capturados. 


No local, podem ser encontradas lontras, capivaras e uma grande variedade de pássaros em busca de alimento. Segundo dados da Secretaria Municipal de Habitação, o bairro concentra aproximadamente 18 mil moradores e 536 empresas com atividades diversas. 


Aposentado, mas não larga a rede 


O compositor Dorival Caymmi (1914-2008) entoava que o “bem do mar, é o mar, é o mar / que carrega com a gente / pra gente pescar”. O refrão de O Bem do Mar, de 1954, resume a vida de João Paulo Neto, 65 anos.  


Nem mesmo a aposentadoria por orientação médica o afastou da atividade. Foi durante uma pescaria de arrasto de camarão que ele sentiu uma forte dor no braço e no tórax, sensação de aperto no peito e dificuldade de respirar. “Senti uma tontura e não lembrei mais de nada. Acordei assustado sobre o barco. Sem força nenhuma”. Os sintomas não deixaram dúvida: infarto do miocárdio. 


Assim que recobrou a consciência, conseguiu direcionar a embarcação próximo a um grupo de outros pescadores no mar. “Fiz sinal que não estava passando bem e me joguei para o outro barco. Imediatamente, todos começaram a me ajudar”.  


Mesmo após dois infartos do miocárdio, João Paulo não deixa o mar
Mesmo após dois infartos do miocárdio, João Paulo não deixa o mar   Foto: Carlos Nogueira/AT

Internação  


Neto ficou 15 dias internado na UTI; e foram mais quatro meses até se recuperar plenamente. “Pior que o susto foi ficar todo esse tempo longe do mar”. Assim que teve o aval do médico, voltou a pilotar a embarcação.“Não tem sensação melhor do que a de pescar”.  


Um segundo infarto – desta vez em casa – o obrigou a vender o barco e penduraras redes. Mas a adrenalina da atividade vive em sua alma.  


Apesar da orientação médica e das sequelas no corpo, Neto é um dos primeiros a aparecer na praia do Perequê para ajudar os companheiros. “Quando me convidam, caio no mar. Quero fazer isso sempre. É o que molda quem eu sou”. 


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