Dona Ondina e o STF

Por: Arminda Augusto  -  09/11/18  -  09:40
Atualizado em 09/11/18 - 09:42

O telefone toca e, do outro lado, está um velho amigo falando da mãe, que não tem plano de saúde e se socorreu do serviço público, há dois meses, por conta de dores abdominais, emagrecimento e inchaço na região da barriga. Pergunta se posso ajudar de alguma forma, nem que seja para saber em que estágio está o encaminhamento para algum especialista. Como ela aguarda há muito tempo sem qualquer tratamento, dia sim, dia não, a senhorinha acaba indo parar num PS para tomar a morfina que lhe aplaca a dor.


Tenho acesso ao prontuário da Dona Ondina, e lá vejo que se trata de câncer mesmo, em estágio avançado. O prontuário recomenda: encaminhamento urgente para oncologia. O “urgente” da dona Ondina não é o “urgente” do serviço público. A resposta me chega: consulta em oncologia só em dezembro.


O pensamento voa. Quando ela conseguiu a primeira consulta, há dois meses, já estava com dores e emagrecimento há outros dois meses. Vai esperar mais um para ficar de frente com o oncologista, que vai talvez pedir mais exames, que vão talvez indicar o tratamento, que vai talvez demorar porque serviço público tem muita demanda, que vai talvez retardar a eventual cura da dona Ondina. Dona Ondina vai morrer? Talvez sim por falta de tratamento no tempo adequado, talvez não porque a família já está fazendo promessas a Nossa Senhora Aparecida. Vai levar uma cabeça de cera a Aparecida se ela sair dessa, e colocar o objeto na Sala dos Milagres que fica no subsolo do Santuário.


Dona Ondina nem deve estar sabendo que, no mesmo dia em que o filho me contou a história e eu fui me informar sobre o estágio do prontuário, o Senado aprovou reajuste de 16,38% no salário dos ministros do STF e dos membros da Procuradoria-Geral da República. Não é aumento, disseram os senadores, é reposição salarial. OK, entendi. A partir de agora, o salário de cada um deles passará de R$ 33,7 mil para R$ 39,2 mil. Jair Bolsonaro resumiu bem o quadro, contrariado que ficou: “Estamos em uma fase que ou todo mundo tem ou ninguém tem. E o Judiciário é o mais bem aquinhoado”.


Dona Ondina está no grupo dois, o grupo do “ninguém tem”. Ela não tem plano de saúde, não tem dinheiro para pagar tratamento particular, não tem corrida com vereador ou deputado para furar a fila dos demais pobres que aguardam pelo oncologista. Dona Ondina não tem saúde.


Difícil não fazer o comparativo dos cenários no Brasil dos contrastes. Uma leitura minimamente crítica das notícias nos remete a disparidades assim todos os dias, em todos os campos. Só que dói mais quando se conhecem os personagens. Não conheço a dona Ondina, mas fico imaginando a senhorinha olhando para o telefone e esperando que ele toque para falar da consulta. Também fico imaginando ela no ponto de ônibus com o filho, cheia de dor, seguindo para o PS, onde tomará mais uma dose de morfina.


Há uma campanha permanente das prefeituras de orientação às pessoas para que usem adequadamente o pronto-socorro. Lá, dizem as campanhas, só se deve ir para situações de urgência e emergência. Casos crônicos devem ser tratados nas unidades básicas de saúde, onde se marcam as consultas e o tratamento segue. Marcam as consultas? O tratamento segue? Só precisam dizer para quando se marcam as consultas, para onde seguem os tratamentos.


Quantas donas Ondinas devem existir entre os mais de mil quilômetros que separam o STF de Brasília da Baixada Santista? Milhares talvez, mas a tecnologia e a rapidez das informações deveriam ser suficientes para levar aos ouvidos dos senadores histórias como a dela. Os ouvidos seletivos dos senadores talvez não queiram escutar histórias como a da Dona Ondina. Porque se quisessem, talvez não se sentissem tão confortáveis em aprovar boa parte dos projetos dos quais participam.


Dona Ondina, aqui vai o meu recado: irei a Aparecida com sua família, e levarei também uma cabeça de cera. Eu acredito na sua cura. Nossa Senhora há de nos ajudar.


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